Opinião

René Dotti: o legado de um professor

JORGE FONTOURA - Professor e advogado

Há vozes que, quando se calam, nos deixam todos órfãos. Decorre neste início de 2022, em 11 de fevereiro, o primeiro ano de falecimento de René Ariel Dotti, um dos mais versados e influentes professores universitários brasileiros, mestre de gerações, multifacetado advogado, escritor e humanista.

Natalino Irti, também professor e jurista italiano contemporâneo, recordou em recente artigo que a alma universitária vive de fluida continuidade entre professores e alunos, em cadeia de constante e renovada doação intelectual. E que, nesse virtuoso devenir, alguns professores de especial vocação perenizam-se na persona de seus discípulos, a resultar no prestígio da ideia-força da importância do estudo, da cultura e da erudição, o tão colimado e necessário progresso da humanidade.

Vulto luminar, sem nunca descurar da advocacia e da cátedra, René Dotti colaborou no aggiornamento do direito penal brasileiro, tanto por meio de seus livros de doutrina, como por sua decisiva participação em congressos e comissões do Ministério da Justiça. Redator incansável de anteprojetos, com constante presença em audiências públicas do Congresso Nacional, na Assembleia Nacional Constituinte foi oráculo da intelligentsia, para a concepção do antológico artigo 5º da Lei Maior. Ainda, na advocacia organizada, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, exímio orador, atuou sempre a primar pela defesa de convicções republicanas, da humanização das penas e da sacralidade dos direitos e das garantias fundamentais.

Como colaborador da imprensa, foi assíduo colunista e requisitado autor de artigos de opinião, não apenas publicados por décadas em diversos jornais do país, textos luminares, muitos dos quais ainda disponíveis em rené@dotti.adv.br. Artigos finamente cinzelados em cultura invulgar, verdadeiros documentos históricos, a retratar importantes mudanças que se deram na momentosa vida brasileira da última transição de séculos.

Bem a propósito da genealogia que deve perpetuar a flama universitária, da qual falava Natalino Irti, feliz exemplo deu-se na recente sucessão de René Dotti em duas academias culturais, quando as cadeiras por ele ocupadas foram preenchidas por ex-alunos: Clémerson Merlin Clève para a cadeira 23, da Academia Paranaense de Letras, e Luiz Eduardo Gunther para a cadeira 3, da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. Não apenas juristas, os dois empossados passaram para bem além da Taprobana, como intelectuais refinados e cosmopolitas, inspirados no compromisso com a beleza das artes e com o humanismo indeclinável da civilização.

Atentos à condição humana, desde estudantes nos anos de 1970, Gunther e Merlin Clève produziram literatura de qualidade, teatro, poesia e prosa, ainda na ambiência clássica da Faculdade de Direito, com o professor Dotti, na curitibana Praça Santos Andrade. Um cenário perfeito, ateneu de escalonata, colunas e capitéis em branco, verdadeiro monumento de beleza incomum. Ainda desses tempos seminais, de conferências e de congressos literários, já eram acolhidos em privilegiado círculo, habitués de prosa e verso de Helena Kolody, de Paulo Leminski e de Wilson Martins, o autor da ainda insuperada História da inteligência brasileira. Imbuídos pelo exemplo, os novos acadêmicos construíam seus percursos intelectuais além de becas e de togas, com múltiplos empenhos, sempre a observar a máxima de Saramago, "não tenhamos pressa, mas não percamos tempo".

É de rigor concluir que cultor do direito, mas ainda amante intransigente das humanidades, de seus teatros, bibliotecas e museus, para René Dotti a docência era também mister de constante busca e cultivo da excelência, dos futuros guardiões do templo, no ciclo inexorável da renovação. Docente-semeador, como quis Natalino Irti, o egrégio professor na Università di Parma e da Università La Sapienza, em sua concepção clássica acerca do continuum da flama universitária. Em outra perspectiva mais singela, apenas a perpetuação da vida e da obra de professores imortais. Ars longa vita brevis.

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