Por JOSÉ ANTÔNIO DOS SANTOS — Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, escritor, autor do livro A Liga da Canela Preta)
O futebol nos seus primórdios e a imprensa negra gaúcha são desconhecidos da maioria dos brasileiros, motivo pelo qual, aqui, os apresentamos ao grande público. A imprensa negra, aqui entendida como jornais escritos pela população negra para denúncia do racismo, defesa de direitos e divulgação de sociabilidades, teve início no Rio Grande do Sul no final do século 19 com os jornais abolicionistas e seguiu até os nossos dias.
Foi por meio desses jornais que recuperamos a história do negro no futebol gaúcho, espaços em que também reverberaram os ecos da "democracia racial" que negam o racismo e criam uma nação onde vicejariam igualdade e respeito. Tradicionalmente, os negros passaram a ter lugar nessa história, apenas destacados pela força e habilidade física no jogo de bola, mantendo-se óbices do reconhecimento da inteligência e da capacidade organizativa na construção dos próprios clubes. O que segue é uma pequena amostra de algumas expressões coletivas daqueles que se organizaram contra tudo isso, tendo o futebol como um meio de representação social e política.
O semanário O Exemplo (1892-1930), dirigido à comunidade negra de Porto Alegre e interior do estado, em reportagem de 16 de outubro de 1910, trazia uma notícia de como estava se desenvolvendo o futebol na capital: "Tem tomado sério desenvolvimento entre nós o jogo de futebol, que, invadindo todas as classes sociais, contam-se já duas associações, compostas em sua totalidade de operários que cultivam esse gênero de esporte. Centro Sportivo Operário e Foot Ball Club Rio Grandense".
Os dois clubes foram criados por operários negros na sua maioria que — não achando espaço para praticar o novo esporte na capital — criaram os próprios clubes. O Rio Grandense foi fundado em 12 de dezembro de 1907, sendo um dos primeiros clubes de futebol de Porto Alegre, onde o esporte havia se iniciado em 1903, por iniciativa das elites locais. O S.C. Juvenil, de Pelotas, criado no ano seguinte, foi também um dos primeiros clubes negros no estado, onde o futebol perdia de goleada para outros esportes como o remo, o turfe e o ciclismo, que enchiam as páginas da grande imprensa.
Foi a partir da década de 1910 que houve o crescimento do número de clubes no meio negro gaúcho. Na cidade de Rio Grande, em 1911 e 1913, foram criados, respectivamente, o Universal e o Cruzeiro do Sul; em Bagé, em 1913, foi fundado o Palmeira, entre outros. O futebol era visto como uma prática desportiva importante para o exercício do corpo, assim como meio de educação e controle das massas trabalhadoras. Menos de 20 anos depois da escravidão, a prática do futebol foi se tornando uma das principais diversões, meio de organização e de representação social que serviu para fomentar discussões dos lugares a serem ocupados pelos descendentes dos escravizados naquela sociedade.
A imprensa negra era a responsável por divulgar o nome daqueles que formavam as diretorias eleitas em assembleias de jogadores e torcedoras, que pagavam mensalidades e participavam ativamente dos jogos e demais atividades festivas. Os clubes mantinham "diretorias femininas", que realizavam festas, bailes, sorteios e quermesses em prol dos cofres do time do coração. Os campos de futebol eram espaços onde negros e negras desfilavam seus esforços organizativos, buscando o respeito e a integração social, locais em que se demonstravam organizados, bem vestidos, educados e cumpridores das regras e deveres sociais. Do mesmo modo, a organização dos times em clubes de futebol, depois em ligas e associações desportivas, serviam ao reconhecimento público no "mundo esportivo" e nas disputas cotidianas.
Foi por meio da circulação dos jornais e da prática do futebol, desenvolvidos em todo o estado nos séculos passados, que eles deram continuidade a projetos comuns de liberdade e acesso à cidadania. Não podemos esquecer que, na maioria das cidades gaúchas, até à metade do século passado, os negros eram impedidos de estudar em determinadas escolas, também de frequentar locais públicos, como praças, confeitarias, clubes, teatros e cafés.
As trocas de informações e de estratégias contra o racismo e a segregação que se deram por aqueles meios colaboraram para que retomassem alianças antigas e construíssem novas na defesa dos seus interesses. Também nos deixaram registros de intelectuais e lideranças negras, agremiações e mobilizações políticas que forneceram novas versões da história e da trajetória social dos negros e negras na porção mais meridional do Brasil.
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