Versatilidade. Certamente essa tenha sido a característica básica que Nara Leão imprimiu a sua trajetória artística. A jovem de classe média alta, moradora da Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, foi chamada de "musa da Bossa Nova", ao iniciar a carreira musical no fim da década de 1950. Quando lançou o LP de estreia, em 1964, aproximou-se do movimento de esquerda, com atuação no Centro Popular de Cultura, no âmbito da União Nacional dos Estudantes. Acabou sendo fichada pelo temível DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), órgão criado pela ditadura militar.
Sem se atemorizar, juntou-se a Zé Keti e a João do Vale no contestador espetáculo Opinião, que entrou para a história da música popular brasileira. Verso da letra do samba que dava título à peça, diz: "Podem me prender/ Podem me bater/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro eu não saio não".
Dois anos depois, Nara, uma estrela em ascensão na MPB, emprestou sua pequena, mas expressiva, voz à interpretação de A Banda, vencedora da primeira edição do Festival da TV Record, que apresentou ao Brasil o autor da marchinha — um certo Chico Buarque de Holanda. Ainda em 1966 lançou três discos que traziam nos títulos forte apelo naquele momento: Nara pede passagem, Manhã de liberdade e Liberdade, Liberdade.
Cheia de personalidade, cantando o bolero Lindonéia, ela se juntou a Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa e Mutantes no Panis et circensis, o álbum Manifesto da Tropicália, de 1968. Uma década após, sempre transitando com familiaridade por vertentes diversas do nosso cancioneiro, a doce e cativante Nara Leão (uma das personagens do Minha Trilha Sonora, livro que lancei em 2015), prestou homenagem a Roberto e Erasmo Carlos num bolachão intitulado E que tudo mais vá pro inferno.
Isso dito, chamo a atenção do leitor para o emocionante documentário O canto livre de Nara Leão, com direção de Renato Terra — o mesmo de Uma noite em 67, sobre o Festival da Record daquele ano; e Narciso em férias, no qual Caetano faz revelações sobre sua prisão e exílio, determinados pela ditadura militar. Disponível desde a última sexta-feira na GloboPlay, a série de cinco capítulos celebra os 80 anos dessa cantora inesquecível, que além de deixar um rico legado para a arte e a cultura brasileiras, foi, com seus gestos e atitudes, precursora do movimento feminista no país.