Caos. Primeira das divindades na mitologia greco-latina, evoca um estado obscuro e uma escassez de ordem, como podemos ler nas Metamorfoses, de Ovídio. Mas por que citá-lo? Porque dele podemos ir, certamente, a uma espécie de síntese alegórica do Brasil dos nossos tempos, recorrendo ao substantivo comum, que nossa língua herdou. Com uma diferença: no mito, não há nenhuma personificação daquele ser, abstração disforme, enquanto em nosso país o caos já assumiu contornos em diferentes instâncias da vida coletiva. E contornos pincelados com tintas da anomia, isto é, com fugas a valores sociais e perturbações que afetam o equilíbrio da nossa conjuntura enquanto sociedade.
Fato 1 — mencionado entre muitos outros que aqui caberiam com lastimável perfeição: um funcionário de restaurante no Pará foi, há poucos dias, agredido após ter solicitado a um cliente o comprovante de vacinação contra a covid, pedido feito em atenção a normas sanitárias. Fato 2 — lemos e relemos notícias como essa, diariamente, porém — e o leitor há de concordar comigo — nada disso nos tem despertado mais qualquer espanto. Indignação, crítica, sim, ainda que nem sempre explicitamente. Mas espanto ou surpresa não mais.
Desajustes, claro, não representam nada de novo sob o sol em terras que abrigam autoritarismos que deitam raízes em longo e esclarecedor histórico. Mas, conforme acepção de Émile Durkheim, teórico francês que introduziu o termo "anomia" nas ciências sociais, existe uma linha que separa o que seria o "normal" social — aquilo que é esperável na realidade, mesmo quando indesejável — e o que passa a ser patológico ou anômico.
Ao lançarmos qualquer balanço ou escrutínio sobre os nossos últimos anos, podemos confirmar, sem dificuldade, que nos inserimos do lado de lá da linha durkheimiana. E nossos obscurantismos têm se convertido em algo naturalizado, costumaz, que ganha as rolagens de telas, as páginas dos jornais e a realidade cotidiana como parte quase que intrínseca da paisagem.
Também é fato que exemplos de disfuncionalidades não estão apenas no seio da população: na verdade, eles têm frequentemente partido de cima, de nossas instâncias de poder, de nosso Brasil oficial. E vários casos parecem figurar como "inspirações" para certos espíritos. No mínimo, tendem a ser apropriados como legitimação para determinadas práticas ou cosmovisões de ódios e pós-verdades.
Aqui relembro Lilia Schwarcz, que, em fases finais da escrita do instigante Brasil: uma biografia, produzida com a também historiadora Heloisa Starling, se via em parte encantada com um país que, a despeito dos problemas, parecia encampar com seriedade a luta cidadã por dias melhores. Publicada em 2015, a obra ganharia um pós-escrito dois anos depois. Nossa história, reforçam as autoras no adendo voltado a dias de luzes menos vívidas em nosso sol republicano, é "feita de escolhas, projetos e de suas consequências".
Essa alusão à nossa história de país, obra contínua em aberto, agora nos reconduz à referência das nossas primeiras linhas, mas sob outro ponto da narrativa mitológica: junto ao Caos jaziam, latentes, as sementes que levariam à formação das coisas - da vida e do mundo. Que possamos, na seara de cá, ver também germinar e brotar sementes: as de resistências e de escolhas e ações concretas que nos levem a tempos renovados. Ano de pleitos federais e estaduais, a propósito, está aí também para isso.