Opinião

Se a raiz é africana, as tradições são brasileiras. Será? 

Correio Braziliense
postado em 08/01/2022 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

MARIA HELENA DOS SANTOS - Jornalista e designer gráfico, consultora técnica em projetos comunicacionais de entidades que visam à promoção do povo preto

Os discursos que norteiam os debates sobre as religiões de matriz africana no Brasil tendem a unificá-las no escopo de seu fundamento, ou seja, em uma origem que lhes é comum, a África. Em outras palavras, um dos principais argumentos que, de certa maneira, é naturalizado por eles, é que um dos pilares desse fundamento, compartilhado entre essas religiões, seria a compreensão comum daquilo que é sagrado entre os povos africanos escravizados em solo brasileiro.

Como se o continente africano fosse tão homogêneo a ponto de não existirem múltiplas formas de expressões religiosas com inúmeras formas de relações entre o mundo físico e o mundo espiritual. Questionar essa naturalização foi o que motivou este texto que você começa a ler, já que nós, negros, somos o único grupo populacional que desconhece suas origens. Será que basta colocar essas manifestações religiosas em um signo único de enraizamento, ou seja, um continente inteiro? As narrativas promovidas por meio desses discursos (re)constroem no imaginário coletivo representações dessas religiões. Pois elas, por um lado, limitam as representações dessas religiões na perspectiva daquilo que lhes é comum, tanto de maneira positiva como de maneira pejorativa e, por outro, limitam representações daquilo que não lhes é comum.

Mais do que isso, esses discursos não apenas limitam, como dizem uma forma de olhar essas representações, e de certa maneira, dizem-nos sem dizer que, se o seu fundamento é africano, as suas tradições são afro-brasileiras. Isto é, em certa medida, aprisionam a própria ideia de cultura desenvolvida e preservada por diferentes grupos étnicos explorados historicamente. Aliás, as narrativas limitadoras são construídas em diversas instâncias na contemporaneidade, destacando-se em três cenários: político, jurídico e educacional. No cenário político atual, com o avanço da bancada evangélica na Câmara e no Senado, foram propostos projetos de lei que objetivam tornar ilícitas práticas ritualísticas que envolvem o sacrifício de animais praticado por adeptos de religiões de matriz africana.

Um exemplo desse movimento ocorreu no estado do Rio Grande do Sul, o Projeto de Lei nº 21/2015 (PL 21/2015), proposto pela deputada estadual Regina Becker Fortunati (PDT/RS), que pretendia alterar o Código Estadual de Proteção aos Animais, de 2003, com a intenção de revogar o artigo 2º da Lei nº 12.131/2004, que impede o sacrifício de animais, mas abre uma exceção para os realizados nos "cultos e liturgias das religiões de matriz africana". Em sua maioria, os defensores de projetos como esses abordam nossas manifestações religiosas como primitivas e pouco desenvolvidas, desconhecendo a complexidade dos contatos heteroculturais, interculturais e transculturais entre povos africanos que foram dizimados e massacrados no período da escravidão. No fundo, tais projetos tendem a provocar o apagamento e marginalização dessas religiões e devem ser combatidos.

Além disso, querem impedir que nós, adeptos da umbanda, do candomblé, do batuque, da quimbanda, ou de qualquer outra religião dita de matriz africana, busquemos as raízes de nossos cultos na África. Essas manobras são reflexo do racismo à brasileira em forma de epistemicídio, mais uma maneira de apagar as heranças dos povos africanos presentes em nós e cultuadas por nós. Mas só se surpreendem com o presente aqueles que desconhecem a história. Ataques a tudo aquilo que "vem dos pretos" não começaram neste século e possivelmente não vão acabar no próximo. Porém cabe a nós ampliarmos essa discussão ao investigar e mapear as origens do que nos é sagrado, pelo direito de saber de onde viemos para além daquilo que nos foi dito e ensinado por quem tentou escravizar as almas dos nossos antepassados. Pois, se sujeitos estranhos aos nossos cultos menosprezam o conhecimento histórico comungado dentro dos nossos rituais, é nosso dever preservá-los. É do interesse deles referenciar as nossas religiões como de matriz africana e em raros casos dizer suas nomenclaturas, sendo que várias pesquisas já investigaram mais de 20 dessas manifestações em todo o território brasileiro. Contrário a isso, busca-se ampliar nossa noção de pertencimento cultural e assim possibilitar escrevermos uma história que ainda não foi escrita, uma história culturalmente rica que nos fale das consequências da influência mútua entre povos que foram dizimados.

 


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