Para os cidadãos que usam os olhos para enxergar além das aparências e usam esse sentido para ler a realidade em seu entorno, mesmo as palavras escondidas ou omitidas pela censura bruta, clamam em silêncio pela verdade. Se um dia todas as palavras do mundo fossem exiladas num planeta distante, restando apenas imagens borradas, impressas em fotos antigas, ainda assim toda uma enciclopédica história humana poderia ser levantada dos arquivos empoeirados de fotografias.
Não é por outra razão que se diz que uma imagem fala mais que infinitos textos. Por isso mesmo é que a ninguém é dado o direito de esconder da população, mesmo por medo ou outros motivos menos nobres, os ardis e as perfídias que contra ela vão sendo organizadas pela elite no poder. Está tudo impresso em imagens mudas, mas que muito revelam. Compactuar com essas tramas, fazendo ouvidos de mercador, é contribuir, ao seu modo, para que o mal cresça e crie raízes.
Na verdade, não há muito mais o que dizer sobre nossa realidade nacional nesses dias que correm. Basta fixar os olhos em algumas fotos e outras imagens que circulam nesse oceano midiático da internet para entender o que se passa no país e em outras partes deste planeta. Está tudo aí, bem debaixo de nosso nariz, impresso em cores vivas.
Quem se der ao trabalho, neste fim de ano, de refletir sobre fotos mostrando encontros, reuniões, confraternizações, almoços, pretensos seminários e outros convescotes realizados não nas concorridas madrugadas da capital, mas em plena luz do dia, pelas mais altas autoridades desse país, pode constatar, sem maiores esforços do intelecto, que estamos todos a bordo de uma nau à deriva. Não uma nau qualquer, mas embarcados numa alegórica barca, muito semelhante a que foi concebida pelo dramaturgo português , Gil Vicente, em Auto da Barca do Inferno, escrita e encenada no ano de 1517.
As semelhanças e até as confusões entre uma fantasiosa realidade, imaginada há cinco séculos em Portugal, e o nosso cotidiano exibido em fotos são tão precisas que até parecem se tratar de uma continuação, em outro tempo e lugar, da famosa peça vicentina. O uso de instituições do Estado para perseguir e intimidar adversários políticos pode ser conferida em foto.
Também pode ser atestado em fotos, dessas que as antigas colunas sociais estampavam diariamente nos jornais, um jantar reunindo os mais famosos escritórios de causídicos desse país, todos eles autênticos janotas, metidos nos mais caros ternos de grife, com seus relógios de ouro a marcar o tempo mais valioso que há, homenageando, sem rubor, um ex-detento, desobrigado de cumprir sua pena e, agora, candidato ao mais alto posto do país.
Estão todos ali, reunidos contra as leis e contra operações do tipo Lava-Jato, que ousaram prender os clientes do exclusivíssimo clube das Prerrogativas. Vê-se em fotos também um mandatário a passear com seu jet ski, sem culpa ou remorso, pelas praias do Sul e do Sudeste, enquanto o estado da Bahia submerge em enchentes históricas, com dezenas de mortes e milhares de desabrigados.
Aqui na capital, em Lisboa, Paris e outros pontos do planeta, as imagens se repetem, mostrando sempre personagens conhecidos da nossa República, todos eles com a boca recheada dos mais finos acepipes e vinhos, alegres e sem culpa. Mal sabem eles que no cais já está atracada da Barca do Inferno, cujo capitão é o próprio capiroto que, do leme, grita: "embarcai todos vós" que "rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum".