MAURÍCIO MELO JÚNIOR - Jornalista, escritor e presidente do Instituto Casa de Autores
Estávamos reunidos com a missão de resgatar um projeto cultural, a Festa Literária de Pirenópolis, a Flipiri, suspensa, como quase tudo nesta vida, pelos dissabores da pandemia de covid-19. Mantínhamos o ânimo, apesar dos noticiários anunciarem tantas mazelas, tantas mortes, tantas dores. Buscávamos um tema que levantasse a poeira e desfizesse o clima pesado, a tensão que pairava — e ainda paira — sobre o mundo.
Minha inspiração, nesse momento, lembrava uma antiga música do cancioneiro popular, composta por Assis Valente, em que Carmem Miranda proclama: "Anunciaram e garantiram / que o mundo ia se acabar. / Por causa disso a minha gente / lá de casa começou a rezar". E saía ela vivendo seus últimos momentos, tratando de se despedir, beijando a boca de quem não devia e até dançando samba em traje de maiô para, decepcionada, concluir: "e o tal do mundo não se acabou".
Aí estava nosso grito de esperança: o mundo não acabou. Seguindo a lição de Assis, não valia a pena distribuir beijos nem sambar em roupa de banho. Restava a nós, pretensos saltimbancos, reinventarmos a felicidade.
Hoje, do alto de quase dois anos de agonia, a esperança, mesmo capenga, está viva. Com espanto e um riso no rosto vejo o vicejar, ainda modesto, mas animador, da literatura. Não chegamos à glória de ter filas nas portas das livrarias, como aconteceu na França diante do fechamento geral imposto pela pandemia, um sonho para quem deseja viver num país de leitores, uma referência ao velho Monteiro Lobato que advertiu: "Um país se faz com homens e livros".
Há anos que acompanho, por curiosidade e ofício, o mercado livreiro e assisti a muitos altos e baixos. Não posso dizer que sou escritor em tempo integral. Devo isso a Ferreira Gullar, que carrega de batismo o nome de José Ribamar Ferreira. Em uma conversa, contava que, sempre quando lhe perguntavam se era ele o poeta Ferreira Gullar, respondia: "Nem sempre, pois é impossível ser poeta 24 horas por dia".
A literatura é ciumenta e gosta de desprezar quem não lhe dedica tempo e paixão. Está intimamente ligada ao mundo do livro, mas também não é de todo fiel a ele. Sobretudo agora, nestes tempos modernos, tem se esgueirado por frestas cibernéticas, conquistando outras plataformas de expressão. No entanto, apesar da alta capacidade de resiliência dessa senhora, insisto em dizer que o livro, em seu tradicional formato de papel, surgido lá pelos idos da Idade Média, ainda é uma tecnologia insuperável. Daí nossa briga para criar mais e mais leitores apaixonados por abrir um livro e sentir seu cheiro e tatear a leve aspereza de suas páginas.
Nessa luta, colhemos boas notícias. Na pandemia, segundo dados divulgados pela Câmara Brasileira do Livro, cresceu a venda de livros em todo o país. Parece que a necessidade de ficar em casa fez com que a reflexão servisse de abrigo e muitos se voltaram para a leitura e essa outra sedutora senhora não perdeu a oportunidade de envolver novos vassalos.
As discussões se ampliaram para outras temáticas. O debate sobre o racismo, por exemplo, voltou à tona. Na verdade, nunca deixou de circular em nossas letras. Lima Barreto e Carolina de Jesus, que sempre salientaram a carga de discriminação social que o racismo traz em si, são provas consistentes. Não se pode esquecer, entretanto, as vozes de Abdias Nascimento e Adão Ventura, de verves mais revolucionárias, renovadas no presente por Jeferson Tenório, ganhador de vários prêmios literários, e Itamar Vieira Júnior, ganhador do prêmio Leya de 2018 com romance Torto arado, que vendeu, só no Brasil, mais de 400 mil exemplares. Um feito.
A voz feminina também vem se elevando com uma força cristalina. Aliás, em seus primórdios mais recônditos, nossa literatura começou com uma voz feminina e negra. A professora Maria Firmina dos Reis, em 1859, publicou no Maranhão o romance Úrsula. Claro que o gesto abriu caminho para tantas outras autoras, de Júlia Lopes de Almeida, que esteve na lista da primeira formação da Academia Brasileira de Letras, mas foi barrada por ser mulher, a Carmen Dolores, escritoras que estão sendo resgatadas na importantíssima coleção Escritoras do Brasil, lançada pelo Conselho Editorial do Senado Federal.
Enfim, essas foram as pioneiras de uma corrente que se firmou com Cecília Meireles, Clarice Lispector, Maura Lopes Cançado e tantas outras. Elas podem ser consideradas mães de escritoras como Tatiana Salem Levy, Clara Arreguy, Susana Fuentes, Carol Bensimon, Natalia Borges Polesso, Maria Esther Maciel, Lúcia Bettencourt, uma lista longa. Essas mulheres vêm dando novos rumos às nossas orientações literárias. Sem rancores feministas, se impõem pela consistência da arte.
Não acredito, enfim, que haja uma literatura feminina. Também não creio em uma literatura afrodescendente. Se essas vozes hoje se impõem, o fazem por suas qualidades. Guardo da leitura de Torto arado um cantar de revivência do sentido comunitário de um quilombo, de uma comunidade que teve que se reinventar no cotidiano para ir além do coitadismo, do discurso apiedado. Recentemente li o romance Vista chinesa, de Tatiane Salem Levy. Um texto dolorido que parte de um trauma profundo surgido na euforia de um grande acontecimento festivo no Rio de Janeiro. E toda festa se esvai na realidade mais dura e cruel. E tudo dito com firme doçura, além de um profundo senso psicológico.
São livros que se impõem pela qualidade, enfim. Claro que essa qualidade resulta num aquecimento do mercado. Depois do baque da falência, ou quase, de gigantes como a Livraria Cultura e Livraria Saraiva, ele, o mercado, precisava de ajustes. E isso está acontecendo. O movimento de inauguração de pequenas livrarias nas cidades turísticas, como Goiás, onde surgiu a Livraria Leodegária, batizada em homenagem a uma poeta local, anuncia o restabelecimento de outros projetos.
Aqui em Brasília foi aberta uma filial da Livraria da Travessa e está se modulando uma filial da Livraria da Vila. Várias pequenas livrarias de quadra, como a Livroteca Story Time, dedicada à literatura infantil, em Águas Claras, surgem dia a dia.
Na verdade, temos o que comemorar. A pandemia doeu e dói em todos nós, mas trouxe lições de humanismo que devemos guardar em nossas paixões. O mundo não acabou e, em gratidão a este sentido de sobrevivência, devemos resistir. Resistir sempre, ao lado de nossos mais caros desejos.
Resta dizer que a 11ª. Flipiri foi um sucesso. Obedecendo a todos os protocolos sanitários, em setembro último, ouvimos Toquinho cantar e falar de Vinicius de Moraes, aprendemos resiliência com Rossandro Klinjey e muitas histórias contamos, discutimos literatura e nos divertimos e nos encantamos. E aprendemos que, diante do fim do mundo, só nos resta resistir. Com muitos livros e muitas leituras.