Por mais de cinco séculos, as populações originárias travam uma luta pela sobrevivência. Uma batalha que não cessa e se tornou mais grave nos últimos três anos. As porteiras foram abertas, mas não foi só a boiada que passou e levou o desflorestamento a bater índices recordes nesse período. As máquinas da mineração clandestina também passaram com autorização dos dirigentes do país. Os danos são incalculáveis. Vidas de crianças, homens, mulheres e idosos indígenas têm sido dragadas diariamente. "E daí?", diria o presidente da República, alheio aos marcos legais dos direitos humanos.
No Congresso Nacional, tramita o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177 que autoriza o presidente da República a denunciar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aprovada pelo Decreto Legislativo 143, de 20 de junho de 2002, e internalizada pelo Decreto 5.051, de 19 de Abril de 2004. O projeto é de autoria do deputado Alceu Moreira (MDB/RS), integrante da bancada ruralista. O parlamentar alega, na justificativa, que boa parte do território brasileiro é tradicional, "o que causa diversas dificuldades de acesso do Estado para garantia do desenvolvimento nacional em razão dos diversos empecilhos elencados pela Convenção 169 da OIT".
A Convenção 169 da OIT foi o primeiro instrumento jurídico internacional que reconheceu os povos originários e tradicionais como sujeitos de direitos. Rompeu com a ultrapassada visão de povos civilizados e não civilizados, e com a doutrina de tutela do Estado. Reconheceu também os direitos e a autonomia dessas parcelas da sociedade. A Constituição Federal de 1988 acolheu igual entendimento e garantiu aos povos indígenas e tradicionais o direito de decidirem sobre o destino dos territórios que ocupam, ao subordinar as atividades econômicas nas áreas à consulta prévia.
"A eventual saída do Brasil da Convenção 169 da OIT só demonstraria a nossa incapacidade de lidar com a diversidade que sempre foi uma das nossas principais características como nação. É dizer: ao invés de dialogar com os nossos povos tradicionais, vamos simplesmente calá-los", afirmou Eliana Torelly, coordenadora da 6ª Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (MPF). Em documento à Câmara dos Deputados, a coordenação do MPF alertou que o PDL 177 é inconstitucional. Uma enquete promovida pela Câmara dos Deputados revelou que mais de 97% dos usuários repudiam a iniciativa do deputado gaúcho.
As terras indígenas representam apenas 13% do território nacional. Menos de 10% das áreas quilombolas foram reconhecidas pelo poder público desde a promulgação da Constituição Cidadã, há 36 anos. A maioria delas está concentrada na Região Norte. Em mais de 500 anos, os sucessivos governos não conseguiram desenvolvimento adequando às necessidades do povo brasileiro. O Brasil ocupa a nona posição no ranking mundial de desigualdades socioeconômicas. Seriam os 13% de terras ocupadas pelos povos originários indispensáveis para reverter esta realidade?
Na verdade, a proposta não seria mais um instrumento para a dizimação dos povos originários e tradicionais, como quilombolas, ribeirinhos e outros, rejeitados, invisibilizados pela elite gananciosa e desprovida de sensibilidade ante as flagrantes injustiças sociais e econômicas? Na avaliação de líderes indígenas, antropólogos, entidades científicas, organizações e movimentos sociais, a aprovação do PDL 177 seria o passaporte para o extermínio.