ORLANDO THOMÉ CORDEIRO - Consultor em estratégia
O ano era 1975. Vivíamos o auge da ditadura, com o AI-5 em plena vigência e a censura campeando. É nesse cenário que o genial Chico Buarque grava Notícia de jornal, obra composta por Luís Reis e Haroldo Barbosa em 1960 cujos versos estão reproduzidos abaixo:
Tentou contra a existência/ Num humilde barracão/ Joana de tal, por causa de um tal João/ Depois de medicada/ Retirou-se pro seu lar/ Aí a notícia carece de exatidão/ O lar não mais existe/ Ninguém volta ao que acabou/ Joana é mais uma mulata triste que errou/ Errou na dose/ Errou no amor/ Joana errou de João/Ninguém notou/ Ninguém morou na dor que era o seu mal/ A dor da gente não sai no jornal.
Como se pode observar, a música nos mostra que a invisibilidade do contingente pobre e miserável da população brasileira é uma trágica realidade desde o século passado. Viajando no tempo até os dias atuais, assistimos à pandemia colocar sob os holofotes um problema cuja dimensão era, até então, ignorada por boa parte da sociedade e de governos. Passamos a conviver com notícias cotidianas mostrando as inúmeras faces desse drama, como podemos confirmar lendo abaixo algumas das manchetes de veículos de mídia impressa e televisiva.
"Fila para conseguir doação de ossos é flagrante da luta de famílias brasileiras contra a fome. Dezenove milhões de brasileiros acordam sem saber se vão conseguir alguma refeição para o dia. Dois anos atrás, eram 10 milhões."
"João Alberto Silveira Freitas é morto em supermercado Carrefour em Porto Alegre por ao menos dois seguranças brancos que o espancaram até a morte. Os agressores, que trabalhavam como agentes de uma empresa de segurança, foram presos em flagrante por homicídio triplamente qualificado."
"Familiares de Emily Victória Silva dos Santos, 4 anos, e Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos, 7 anos, cobram por justiça pelas mortes das duas crianças. As meninas, que são primas, brincavam no portão de casa, por volta das 20h30, quando foram baleadas. Emily foi atingida na cabeça e Rebeca no tórax. O caso aconteceu na comunidade Barro Vermelho, em Gramacho, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense."
"Era no colo da mãe que a pequena Alice Pamplona da Silva de Souza, de 5 anos, estava quando foi baleada no pescoço, à meia-noite do dia 1°, no Morro do Turano, na casa da madrinha, onde a família estava reunida para comemorar a chegada de 2021."
"A morte da grávida Kathlen Romeu gerou repercussão e familiares e famosos lamentaram a perda da jovem para a violência do Rio de Janeiro. A designer de interiores de 24 anos foi morta, na tarde de terça-feira (8), atingida por uma bala perdida durante um confronto entre policiais e criminosos no Complexo do Lins, na Zona Norte do Rio."
"Os três meninos mortos em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, passaram por uma sessão de tortura antes de serem executados. Um deles morreu em decorrência da surra e os outros dois foram mortos por causa disso, segundo investigação da Polícia Civil do Rio de Janeiro."
Sessenta anos depois "a dor da gente" passou a sair no jornal, e isso é uma mudança muito importante, mas que não veio acompanhada de nova atitude por parcela significativa da sociedade. Na verdade, o que temos visto é certa naturalização diante dos problemas. Algo do tipo: é lamentável, porém, fazer o que, é assim mesmo.
Se um inocente morre por bala perdida numa incursão policial, a justificativa é que se trata de efeito colateral. Se o tráfico e a milícia criam seus tribunais para determinar a execução de rivais ou inocentes, é comum ouvirmos que não deveriam ter se metido com eles. Se uma mulher é agredida, certamente alguma coisa ela aprontou. Afinal, ela não poderia estar usando aquele vestido curtinho. Se mais pessoas lotam as ruas pedindo comida, é porque não querem procurar um trabalho.
O clima de ódio que há 15 anos vem prevalecendo nas disputas políticas e que transbordou para as relações sociais propicia um caldo de cultura para a manutenção de tal cenário, agravado por declarações e atitudes do principal mandatário do país e de seu governo. Infelizmente, ele ainda encontra muita gente que o segue nesse comportamento cujo maior simbolismo foi a conhecida declaração "e daí?".
Claro que temos exceções. Há um grande número de iniciativas na sociedade em que ONGs, empresas e personalidades têm procurado estimular a solidariedade e a luta em defesa desses segmentos, mas ainda temos um longo caminho a percorrer para resgatarmos os valores civilizatórios. Enquanto isso, continuaremos a conviver com esse tipo de notícia de jornal.