Opinião

Rodrigo Craveiro: 'meninos-passarinhos'

"O trio de amigos apenas queria se divertir, dois dias depois do Natal do ano passado"

Eram três meninos negros. Crianças. Saíram para jogar bola naquele 27 de dezembro de 2020. Nunca mais voltaram para casa. Aconteceu em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Fernando Henrique tinha 12 anos. Alexandre Silva e Lucas Matheus, 11. O trio de amigos apenas queria se divertir, dois dias depois do Natal do ano passado. Provavelmente, um deles resolveu estrear a bola que ganhara. Fernando Henrique, Alexandre e Lucas desapareceram. Nunca mais foram encontrados. Pais e mães receberam o amargo abraço do vazio, da saudade, ficaram com o luto imposto e inacabado. Não puderam enterrar os seus pequenos, não tiveram a chance da certeza da finitude de seus amores. Não receberam o direito de velar os corpos, de derramar lágrimas enquanto tocavam-lhes os rostos frios e inertes em uma última demonstração palpável de amor.

Não fosse o trabalho da polícia, o destino dos três amigos cairia no esquecimento, na vala dos crimes insolúveis. A investigação descobriu, escrachou, o que há de mais dantesco na natureza humana: a atrocidade sem limites. Fernando Henrique, Alexandre e Lucas foram torturados por traficantes da cidade. Os criminosos praticamente lhes impuseram um julgamento sumário. O mesmo tribunal de execução que matou o jornalista Tim Lopes, em 2 de junho de 2002. Tudo porque os meninos foram acusados de roubar um passarinho que pertencia... (Pertencia, não...) Que era mantido numa gaiola pelo tio de um dos traficantes.

Um dos garotos não resistiu à sessão de espancamentos e morreu. Os algozes decidiram, então, assassinar os outros dois. Os três corpos foram jogados dentro de um rio. Nenhuma palavra foi dita pelas autoridades cariocas ou pelo presidente da República. A imprensa não deu a merecida atenção ao caso, à exceção do tabloide britânico The Guardian, que estampou a história na capa do site. Ninguém deveria normalizar o anormal. Ninguém deveria aceitar a existência de um Estado paralelo que julga, executa e mata. Que assassina. Comete um crime de incomparável gravidade ao furto de um passarinho. Não é possível que tal selvageria não seja suprimida de nossa sociedade.

Penso em Fernando Henrique, em Lucas e em Alexandre. Tento, em vão, dimensionar o horror que enfrentaram naquele 27 de dezembro de 2020. Em como dois deles viram o amiguinho ser morto por um bando de trogloditas aos socos e pontapés. Busco sentir o medo ao terem a sentença decretada por aqueles que julgavam fazer justiça (pasmem!). Eram três meninos. Crianças. Tinham a vida toda pela frente. Gostavam de jogar bola. Queriam retornar ao aconchego de casa, aos beijos e abraços dos pais. Não mais puderam. Viraram passarinhos. Ganharam asas e partiram desse mundo de horror, de banalização da violência, de culto à morte. Passarinhos que viram a vida passar tão brevemente. Meninos-passarinhos. De ossos quebrados, órgãos dilacerados e sonhos roubados.

 

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