Poucas atividades culturais foram tão afetadas pela pandemia como a cinematográfica. Com o fechamento das salas de projeção no primeiro semestre de 2020, além do avanço e da massificação dos serviços de streaming, as grandes telas mergulharam na escuridão. E uma das experiências coletivas mais atraentes que foram criadas pelo homem somente voltou a ser desfrutada depois do início da vacinação e da redução da taxa de transmissão do coronavírus.
Com a adoção dos necessários protocolos de segurança sanitária, houve a retomada da realização de eventos para divulgação e discussão de obras audiovisuais. Nos últimos dias, quatro festivais foram iniciados. O mais tradicional deles, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, conclui amanhã a 54ª edição e, mesmo no modelo virtual, sem sessões presenciais, tem cumprido a sua missão de projetar filmes inéditos, revelar talentos, promover encontros e debates, exibir a diversidade do povo brasileiro.
Mas é importante destacar uma das atividades mais relevantes promovidas pelos festivais e pouco conhecida pelos brasileiros: contribuir para a preservação da história visual do país, seja por meio de exibições de cópias restauradas de longas-metragens, seja pela realização de seminários com especialistas em preservação. Esta ação se torna ainda mais essencial quando se registram seguidas demonstrações de descaso do poder público com o nosso patrimônio. Basta lembrar do incêndio que consumiu parte da Cinemateca Brasileira, em julho, atingindo material guardado por décadas e de valor inestimável.
Como foi destacado este ano pelos organizadores da Mostra de Ouro Preto, que chegou em 2021 à 16ª edição, "o cinema é um reflexo do nosso tempo histórico", daí a decisão do evento de revisitar o passado com o olhar contemporâneo a partir dos conceitos de preservação, história e educação. Até porque a produção audiovisual também oferece uma possibilidade preciosa de reconstituir fatos que marcaram um país e, assim, apresentá-los às novas gerações, por meio da recriação ficcional ou da linguagem documental.
Além disso, o cinema nos ensina a conviver com a relativização do tempo. "Os tempos históricos (nas telas) podem ser cronológicos, mas não são lineares e compartimentados, respeitando as datas e os períodos como se fossem prazos", lembraram os responsáveis pela curadoria da mostra de Ouro Preto.
Não por coincidência, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro programou para o encerramento a exibição de um documentário sobre o impacto do coronavírus na vida dos povos xavantes em aldeia em Mato Grosso: ao se fazer o registro no calor da hora, as câmeras servem como artefatos para captação e preservação de uma história pouco conhecida pela maioria dos brasileiros que vivem nas grandes cidades.
Por isso, vale um lembrete aos governantes que não se importam com o zelo do patrimônio audiovisual: as pessoas passam. As imagens — quando devidamente preservadas — permanecem. E ajudam a moldar a memória de uma nação.