Violência

Artigo: Compromisso público por uma vida sem violência

O Brasil, apesar de ter índices altos de violência contra as mulheres, tem uma das legislações mais avançadas do mundo

O feminicídio, previsto pela Lei 13.104/2015, refere-se aos assassinatos de mulheres em contextos de violência doméstica e familiar e àqueles casos em que há menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Por se tratar de uma circunstância qualificadora do homicídio, está entre os crimes hediondos. Consta, portanto, entre os crimes mais graves do ordenamento jurídico, sendo considerado altamente repulsivo e inafiançável, insuscetível de graça, indulto, anistia, fiança ou liberdade provisória.

Os feminicídios explicam-se pela existência de estruturas históricas e sociais que instituem e reproduzem a condição histórica subalternizada das mulheres tanto nas relações da vida pública quanto na vida íntima. Nesses crimes, o corpo das mulheres é visto como um território de disputa e dominação. “Se não for minha, não será de mais ninguém”: esta é uma das frases mais comuns nos relatos de tentativa ou consumação desses crimes. Expressa muito bem o imaginário do agressor, para quem as mulheres não são dotadas de autonomia. É por esse motivo que um dos momentos críticos para as mulheres em situação de violência é, justamente, a separação. Em uma sociedade marcada pelo sexismo e pela misoginia, mulheres sofrem constantemente com a privação de sua liberdade e seu direito de decidir.

São essas estruturas que explicam a manutenção das desigualdades, que caracterizam nosso país, e que, ao encontrarem outras estruturas segregadoras, como o racismo, o capacitismo e a desigualdade de classe, explicitam as razões pelas quais há urgência no desenvolvimento de políticas públicas transversais. Essas devem ser de responsabilidade de todos os setores do Estado, incluindo as políticas econômicas, de promoção do trabalho decente, da assistência social, do acesso à saúde e à moradia digna.

Embora os assassinatos fossem previstos no Código Penal Brasileiro como crimes, e obviamente abarcassem as mulheres, a denominação “feminicídio” enquanto uma qualificadora dos homicídios, tem um papel muito relevante para além da dimensão jurídico-penal. Dar nome às coisas é um modo de reconhecer sua existência, de materializar um conjunto de situações em torno de um conceito que explica um padrão de fatos ou acontecimentos. Que outro nome senão "feminicídio" daríamos a uma tentativa de assassinar uma mulher dormindo em sua própria cama, no convívio de sua família, como aconteceu com Maria da Penha? Ou assassinada diante dos filhos, vitimadas por armas brancas, as mesmas que antes eram usadas para preparar os alimentos da família? Que nome daríamos a esses casos em que mulheres perdem a vida nas mãos de pessoas a quem já amaram? É desse fenômeno que falamos e que precisamos conhecer enquanto estrutura social, com reflexos nas relações interpessoais, que requer amplas e diversificadas ações de transformação de uma cultura que insiste em objetificar e menosprezar as mulheres.

O Brasil, apesar de ter índices altos de violência contra as mulheres, tem uma das legislações mais avançadas do mundo, que criou mecanismos robustos para o enfrentamento do problema e para o atendimento às mulheres. Destacam-se as medidas protetivas, que são decisões judiciais de caráter emergencial para interromper o ciclo da violência e preservar a integridade física e mental da ofendida. Outra inovação é a atuação em rede dos serviços de atendimento (art. 8º da Lei Maria da Penha), que prevê a intersetorialidade nas políticas públicas e judiciárias, instituindo a governança na gestão pública de enfrentamento à violência.

Na agenda pública, mais premente do que nunca, está a necessidade de aprimoramento dos serviços, o que envolve sua capilaridade, ou seja, sua ampliação em número e dispersão territorial. Está, também, o aprofundamento de protocolos entre eles, por meio do estabelecimento de convênios intersetoriais e outras formas de articulação entre os órgãos governamentais e o sistema de Justiça, incluindo atores relevantes como a sociedade civil e as instituições de ensino e pesquisa, como escolas e universidades. Para isso, a previsão e a execução orçamentária são indispensáveis, a fim de que intenções sejam efetivamente convertidas em investimento público na dignidade das mulheres.