Por Sacha Calmon - Advogado
A história de nosso país registra que, no período imperial, paisanos foram julgados e incriminados por servidores fardados decorrentes de participação em ações contestatórias e atos de rebelião. Nos primórdios da República aconteceram perseguições aos correligionários da falecida monarquia. Na década de 1930, houve a ação do Tribunal de Segurança Nacional sobre os comunistas de então. De 1937 até 1945, tivemos uma feroz ditadura, chamada de "período Vargas".
Durante o período ditatorial, a Justiça Militar perseguiu civis acusados de crimes contra a segurança nacional e a ordem econômica (esse período de 21 anos durou de 1964 a 1985. Para Bolsonaro, deveria ser prolongado). Desde a redemocratização do país, os processos se baseiam no Código Penal Militar e no Código de Processo Penal Militar. Atualmente, os fardados alegam que a retirada da competência da Justiça Militar poderá provocar a descriminalização de qualquer conduta cometida por civil contra as instituições militares e seus membros.
O julgamento de civis por militares é um procedimento que acontece em vários países do mundo. Nos Estados Unidos, qualquer civil que ajude ou tente ajudar pessoas consideradas como inimigos pode ser julgado por cortes marciais ou comissão militar. Em Uganda, neste ano, o Tribunal Constitucional determinou que as cortes militares não podem mais julgar civis. Em Israel, o comandante da área ocupada tem um imenso poder legislador e autoridade judiciária.
Observe-se que também existe o julgamento de militares por civis. Na Holanda, a partir dos anos 1970 do século anterior, foram instituídas câmaras militares em tribunais civis com juízes especializados. Na Alemanha, desde o fim da Segunda Guerra, os atos criminosos cometidos por soldados são julgados em tribunais criminais comuns, por juízes civis, e as infrações menores se vinculam a tribunais administrativos. O caso dos Estados Unidos reflete a expectativa majoritária da população.
A Alemanha e a Holanda são países com alto nível de desenvolvimento norteados por um regime democrático longevo, muito estável e bastante eficiente. Por causa do avançado processo de civilização, seus militares são considerados como cidadãos de uniforme e têm suas vidas regulamentadas fundamentalmente pela Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, que garante a eles todos os direitos atribuídos aos civis. Além disso, a sociedade os valoriza, têm representantes no parlamento que atuam.
Sem desqualificar a justiça castrense, cabe apontar que a inversão da polaridade ajuizadora precisa ser assentida e, paulatinamente, buscada, porque é mais consonante com o legítimo funcionamento da democracia. Acrescente-se que sua existência é contrária ao irrefreável processo de civilização que se encontra avançado em todas as forças armadas dos países norteados pelo regime democrático, diz Antonio Carlos Will Ludwig, professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela Universidade de São Paulo (USP).
No Brasil hodierno, essas esferas estão bem delimitadas, por força da Constituição de 1988, a chamada Carta Constitucional Cidadã, superados os julgamentos de civis por militares com espeque na Lei de Segurança Nacional. Durante o período ditatorial militar — quando tínhamos generais presidentes (Castelo Branco, Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo) — pulularam os inquéritos policiais militares ou IPMs.
Houve o IPM dos estudantes, dos operários sindicalizados, dos professores e assim por diante. Era em Juiz de Fora, a sede em Minas, da Justiça Militar, um tribunal de exceção. Dessa época as torturas nos Doi-Codi, aprovadas por Bolsonaro na pessoa do coronel Brilhante Ustra, o torturador-mor. Quando houve o impedimento de Dilma Rousseff, Bolsonaro votou gritando o nome desse torturador. E, completando, disse: "O pavor de Dilma". Hoje, ele governa o Brasil. Um Brasil que regrediu política e economicamente. Falando sério, acrescentamos 4 milhões de brasileiros na faixa da pobreza absoluta, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Será que os brasileiros que o apoiam (19%) também são adeptos da tortura? Alguns o são pelas manifestações de intolerância política, apesar do fracasso econômico do regime bolsonarista. Mas esse período de regressão está a findar-se, e será, definitivamente, derruído pelo voto popular como acontece nos regimes democráticos, haja vista a derrota de Bolsonaro no 7 de setembro incendiário protagonizado por ele, mas que não seguiu em frente pela resistência das Forças Armadas. Somente, restou-lhe, depois disso, se entregar ao Centrão, seu berço.
É incrível não perceber a cultura do ódio ao adversário político em curso no país, como jamais se viu. É urgente a pacificação da sociedade brasileira, a aceitação da diversidade e o respeito à oposição, base da democracia. Eleições valem. E quem ganhar toma posse, seja lá quem for. Esse é o custo e o preço da democracia.