Opinião

Maristela Bernardo: "feliz ano nenhum"

Correio Braziliense
postado em 16/12/2021 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

MARISTELA BERNARDO - Jornalista e socióloga

Paira no ar um constrangimento generalizado neste final de 2021. Mais duas semanas e estaremos diante do rito de passagem anual, no qual desejamos boas festas e feliz ano novo. Mas, agor, não dá. Ficou chato, soa mal, sabemos que é fake news. Estamos escolados pelo final de 2020, quando demos suspiros de alívio e festejamos aquele que, supostamente, seria a saída do suplício, do signo da morte e do sofrimento. Lá vinha um 2021 novinho, a gente dando uma boa varrida na vida, uma espanada para voltar a algum território conhecido, sob controle, rotineiro. Dá até uma tremedeira só de pensar no que rolou de lá para cá.

Chegamos perto de 620 mil mortos pela covid, tá tudo estranho. O cotidiano virou de pernas pro ar e vamos nos ajeitando nas frestas do que sobrou do dia a dia de antigamente, do mundo como conhecíamos. E aí chegamos a este momento em que até pega mal bancar o maluco e ficar desejando "feliz ano novo" pra lá e pra cá. Porque ninguém sabe o que vem pela frente, mas dá para desconfiar que coisa boa não é. A única certeza é a de que não podemos baixar a guarda, precisamos manter os cuidados, proteger os filhos, os amigos, todo mundo.

Nunca ficou tão claro que a mudança de ano é uma convenção que tem seu valor: dá uma animada, a rotina de comer e beber ganha um upgrade, presentes, luzes, sinos, cores, tudo é exagerado. Fica a impressão de que o ruim está ficando pra trás e desembarcamos num ano novinho no qual tudo pode ser melhor: nós mesmos, o vizinho, o patrão, a dieta, o mundo. Agora estamos aprendendo a lidar com a realidade. Tudo o que não prestava no ano velho está cochilando atrás da porta, só esperando que a gente saia daquele porre de 31 de dezembro pra aparecer e lembrar: "Oiê...acabou a brincadeira..."

E só estamos nessa situação porque, pela primeira vez, desde o século passado, todas, ou quase todas, as pontas da desgraça se juntaram. A pandemia jogou o país num cenário global de megacrise sanitária que interagiu internamente com fatores únicos que não só a potencializaram e lhe deram dimensões de crime contra a população, como destamparam um caldeirão de horrores políticos e sociais inimagináveis. Que tendem a transformar em pesadelo o cenário eleitoral de 2022. Eleições presidenciais tendo como pano de fundo o tecido democrático roto, esgarçado, pisoteado, esculhambado.

A realidade social ainda mais precária, fome, pobreza aumentada, ambiente propício aos estelionatos políticos de toda ordem, ao império da mentira, da falsidade, do engodo. As instituições cansadas de guerra contra o persistente ataque de manobras golpistas para fragilizá-las. Um presidente da República exaltando a ignorância e a violência, sucateando o país, desmontando políticas estruturantes, como educação, saúde, meio ambiente, tecnologia. E falando, falando, falando do alto dos escombros da nação, distraindo a atenção de todos da radical ausência de governo que deixará de herança uma tarefa de reconstrução que levará décadas e talvez nem se complete.

Também não melhora muito olhar para o outro lado, onde supostamente deveriam se juntar as cabeças pensantes, responsáveis, democratas, capazes de liderar a saída do caos. Lá estão com seus velhos discursos salvacionistas, suas estratégias de poder exclusivo, seu mais do mesmo, suas alianças fajutas, em cima apenas de alcançar poder. Tristeza. Cansaço. O que falta acontecer para o Brasil virar a chave de sua odiosa origem racista, colonialista, genocida, golpista, desumana e injusta e virar um lugar que preste para viver?

No desespero de pertencer a uma geração frustrada e frustrante (a que enfrentou a ditadura militar dos anos 60 e 70), procuro explicações até inusitadas para esse destino infeliz. E vou dividir com vocês a mais ousada delas: acho que isso foi praga do bispo Dom Pedro Fernandes Sardinha, comido pelos caetés após um naufrágio no litoral de Alagoas, lá pelos idos dos 1500, quando começava aqui essa esbórnia. Enquanto esquentava o caldeirão dos caetés, temperado por algumas ervinhas de cheiro, o bispo Sardinha deve ter soltado a praga, em bom sotaque lusitano: "Essa m... de país nunca vai dar certo, até o final dos tempos!"

Pois é. A gente tem que distrair a cabeça... E no mais, sinto muito, mas não vou desejar feliz ano nenhum para ninguém. Só desejo que cada um se encha de ira justa, da força da revolta e faça o que lhe for possível para desfazer a conjura do Sardinha. Que venha 2022. Estamos aqui, como sempre estivemos, dispostos a começar tudo de novo.

 

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