Marcelo Oliveira Lopes Serrano - Coronel da Reserva
No Jornal O Globo de 22 de novembro, o colunista Irapuã Santana, escrevendo sobre o movimento negro, afirmou que a questão de Zumbi ter possuído ou não escravos não tem importância, pois o que de fato importa são os símbolos e as inspirações. No momento em que monumentos e estátuas de personagens históricos vêm sendo pichados e até mesmo retirados das praças públicas pelos vínculos com a escravidão, como é possível dizer que a dúvida acerca de Zumbi ter sido ou não escravagista não é importante? Por que o monumento dos bandeirantes no Ibirapuera e a estátua de Borba Gato são pichadas pela mácula escravocrata que se lhes atribui, mas, no que concerne a Zumbi, isso é relevado por causa do símbolo que ele representa? Isso não é dispor de dois pesos e duas medidas? Não é aceitar que os fins justificam os meios?
Ao referir-se aos símbolos e inspirações que "podemos construir", o colunista não estaria admitindo que os símbolos escolhidos não precisam representar de fato o que simbolizam? Que o que importa é a construção de mitos? Francamente, isso parece um ardil vergonhoso. Na coluna ao lado da dele, outro jornalista indicou a que absurdos ideológicos isso pode chegar ao referir-se a uma manifestação antirracista na qual uma faixa indicava: "miscigenação é genocídio".
Analisada em retrospecto, a escravidão é, sem dúvida, hedionda, mas temos de admitir que ela não foi criada pela perversidade de europeus brancos e de seus descendentes, cúpidos por lucros fáceis mediante a privação da liberdade e o trabalho forçado de pessoas capturadas de povos negros inocentes. A escravidão foi uma instituição generalizada ao longo da história humana; ela esteve presente em praticamente todos os continentes e em todos as culturas e até bem pouco tempo atrás em termos históricos. Os negros africanos foram sem dúvida alguma as maiores vítimas nos tempos modernos, mas não foram os únicos; todas as "raças" sofreram a escravidão em maior ou menor medida.
Em A manilha e o libambo, Alberto da Costa e Silva, o maior africanista brasileiro da atualidade, descreve inequivocamente a prática da escravidão de negros pelos próprios povos negros da África muito antes da chegada dos portugueses àquele continente. Se sobre Zumbi paira alguma dúvida acerca de ele ter ou não escravos, Alberto da Costa e Silva não deixa dúvida alguma no tocante, por exemplo, à rainha Ginga de Angola, assídua fornecedora de cativos para os mercadores de gente portugueses: assim como se tem feito com outros personagens históricos, a imagem dela não deveria ser rejeitada como escravagista pelo movimento negro e por todos que apoiam esse radicalismo em seu modo de atuar, de acordo com os mesmos critérios alegados contra a imagem daqueles vultos históricos?
Não há motivo para tal distinção de tratamento, a não ser que o importante seja a "construção de símbolos", e não a verdade histórica, já que é muito fácil iludir as massas animadas por sentimento libertário, mas desprovidas de conhecimentos aprofundados sobre esses fatos do passado, inadmissíveis pela consciência moderna, mas vistos por muito, muito tempo como prática, se não natural, pelo menos aceitável por nossos antepassados de todos os povos.
A reflexão sobre uma questão correlata leva à pergunta: por que o movimento negro não cultua as figuras de Henrique Dias, de José do Patrocínio, de Aleijadinho e de vários mestiços, característica de nossa sociedade, como Machado de Assis, André Rebouças e muitos políticos de destaque, mesmo anteriores à abolição da escravatura? Aprendia-se sobre todos esses personagens no primário e no ginásio, e sobre Zumbi também, sem falar de Filipe Camarão, Tibiriçá, Arariboia e Cunhambebe, portanto, não é bem verdade que a história oficial só inclua personagens brancos como se tem alegado.
Há uma explicação para essa indiferença: esses personagens não se prestam como "símbolos" revolucionários, já que atuaram junto à sociedade, e não contra ela, algo semelhante à diferença entre Martin Luther King e Malcom X. Refletindo-se mais profundamente, isso talvez seja reflexo do fato de o movimento negro entre nós ter se originado de um pensamento radical de esquerda, que via na confrontação de segmentos sociais uma nova forma de "luta de classes", um modo "revolucionário" de promover sua causa e de chegar ao poder: negros contra brancos, índios contra não índios, homossexuais contra heterossexuais etc. Se for verdade, isso é altamente prejudicial, pois o aventureirismo marxista-leninista, de sórdida lembrança, já deixou bem claro para o mundo que a solução não pode ser revolucionária, baseada em utopias, e que só pode haver jeito para os problemas sociais mediante o convencimento, a cooperação, a boa vontade e a obediência às leis.
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