Alfredo Attié - Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) e presidente da Academia Paulista de Direito (APD)
Neste momento de luta antirracista, brilha na memória Luiz Gama, advogado, escritor, jornalista, jurista, abolicionista, educador, que ensinou liberdade ao Brasil do preconceito, da violência e da desigualdade. Nesse Brasil não havia condições para afirmar — item obrigatório da lei civil — que toda pessoa seria capaz de possuir direitos e deveres. Pessoa é um termo chave para o direito, núcleo em torno do qual gravitam os direitos e as relações que autorizam cuidar da sociedade em benefício de todos, e não apenas de uma parcela. Refere-se a ideias de inclusão e participação estendidas a todos, e não apenas a privilegiados. É um conceito que serve, sobretudo, aos que sonham participar e desejam ajudar a moldar o espaço e o tempo comuns, ter voz e ação na sociedade e na política. Nesse sentido, corajosamente, Luiz Gama nos lembra que todos partimos dessa condição ilegítima de dominação para nos tornarmos pessoas, ao nos assenhorearmos de nós mesmos e de nosso destino.
Foi extraordinário o percurso do baiano Luiz Gama (1830-1882), em suas várias travessias pela vida brasileira no século 19. Criança ávida por aprender e compreender o mundo, guardado por uma mãe amorosa e inspiradora, da qual foi separado quando tinha 10 anos, tornou-se escravo pelo ato covarde do pai europeu, que o via como coisa e não como pessoa, e, por isso, o vendeu para pagar dívida de jogo. Ninguém deve ter o destino imposto pelos outros. A escravidão, como a opressão, a exploração, a dominação são o resultado da exclusão, e não atos de nascimento. Aos 17 anos, Luiz Gama vai aprender a ler, pelo ato de reconhecimento de igualdade do estudante de direito. É o primeiro passo da redenção pessoal. Diante da mata que esconde os perigos da emboscada e da negação da busca de si e da defesa dos outros, Luiz se torna livre, virando as costas para a suposta comodidade da servidão que a ideologia do senhor apresenta como único destino: a bondade que queima livros e nega o caminho da autonomia do pensar e agir.
O Brasil não teve Código Civil no Império por causa da escravidão. Diferentemente dos Estados Unidos, que ousaram declarar no momento de formação que toda pessoa nasceria livre — muito embora somente viessem a reconhecer essa condição no curso do século 20, muitos anos após a abolição da escravidão, no momento da afirmação, exatamente, dos direitos civis —, o Brasil não quis expor essa contradição em suas leis. Nos dois países, porém, a extensão e a realidade da condição de pessoa ainda constituem um desafio.
A afrobrasilidade — que forjou e enriqueceu, em meio a conflito e opressão, nossa cultura, vida, ciência e, com o doutor Luiz Gama, nosso direito — teve valorização modesta, numa sociedade que a sufocou e a excluiu. Em geral, as personagens negras são esbranquiçadas pela História. Eu sempre dou o exemplo daquela representação do escritor Machado de Assis como uma pessoa loira de olhos claros numa série, interpretado pelo ator Jardel Filho, que era uma pessoa branca e com traços europeus. Outro exemplo é o do poeta Castro Alves, interpretado pelo ator Tony Ramos, que não tem o biótipo semelhante.
Luiz Gama, patrono da abolição da escravidão no Brasil, transformou-se no centro do qual irradia não apenas a liberdade, mas a sua aprendizagem difícil, na procura cheia de obstáculos da expressão do que somos e do que nos podemos tornar.
O percurso do homem das leis é o da luta pela libertação, luta que se faz, paradoxalmente, contra as próprias leis, que são instrumentos da negação da liberdade. A outra justiça, que o doutor Luiz Gama propõe, é julgar a Justiça que vemos, demonstrando como é injusta. Sugere construirmos juntos outra noção de justiça — que enxergamos com o olhar da imaginação, numa sociedade igual — que deixe de ser indiferente, conformada com seus próprios erros, que geram o sofrimento da maioria. Luiz Gama aprendeu um novo Direito, que o Doutor Gama ensina. Como advogado, trabalhou para libertar muitos escravizados. Foi reconhecido como advogado somente 133 anos depois de sua morte.
Abolir os resquícios de escravidão ainda presentes em nossa sociedade depende de todos e de cada um, e não de um ato arbitrário, pretensamente benévolo. Vidas negras importam, gritam Luízes e Luízas Gama, nas praças e nos tribunais.