Carolina Martins — Jornalista, escritora, sócia e cofundadora da Cassangue Produções, idealizadora e curadora do Festival Afro Urbano
Arte e cultura são conceitos amplos e abstratos. Todo mundo gosta. Música, cinema, literatura. Difícil encontrar alguém que defenda abertamente o fim das expressões artísticas. De algum tipo de arte você gosta, não é possível! Durante a pandemia, nos períodos de isolamento mais rigorosos, o que salvou muita gente foi a arte.
A cultura não para. Aliada à tecnologia, então, foi uma explosão de dancinhas no TikTok, minidocumentários autobiográficos nos stories, novos fotógrafos se descobrindo ao registrar o pôr do sol na janela. Arte é tudo isso (e muitas outras coisas). É assim que a cultura vai se forjando, eternizando a vivência de um povo, de uma época, de uma história. E se estamos falando da população negra, a cultura é, ainda, fonte de resistência.
O debate racial ganhou destaque nos últimos anos, e fica mais forte a cada assassinato ou episódio de racismo vergonhoso que revela a segregação arraigada na nossa sociedade. No mês de novembro, catalisado pelo Dia da Consciência Negra, as discussões tomam conta de jornais, debates na televisão e publicações no Instagram. Enquanto isso, durante outros 364 dias do ano, e, ao longo de nossa vida, nós, pessoas negras, estamos traçando estratégias de sobrevivência. Encontrando formas de continuar a trajetória de liberdade iniciada por nossos ancestrais lá atrás, quando foram sequestrados e forçados a construir uma existência na terra brasilis.
É aqui que entra a arte. Porque foi nos batuques da senzala, nos cantos para os orixás, no jogo de capoeira que nosso povo encontrou força para seguir. Nos sambas, nos manifestos pela abolição via imprensa negra, nos blocos afros de carnaval que ostentavam negritude. Foi por meio deles que expressamos nossa leitura de mundo, nosso banzo, nossa revolução. É com a arte que continuamos expressando nosso orgulho e nosso valor.
O Festival Afro Urbano nasceu em 2021 com este propósito. Reunir artistas negros da nova geração do Distrito Federal para celebrar a vida! São músicos independentes, artistas visuais, fotógrafos, escritores, dançarinos e contadores de histórias. Pessoas que usam o corpo, a voz, as palavras e a própria existência para, por meio da arte, manifestar que afetos e beleza compõem a vida negra e merecem ser exaltados.
Na edição realizada em Taguatinga no último sábado (20), no espaço cultural Caracas,véi, cinco escritores comandaram um sarau literário intercalado por 10 atrações musicais e de dança que culminaram num verdadeiro quilombo cultural. Para muitos dos que participaram, foi o primeiro evento após 20 meses de pandemia. Perdas foram lembradas (perdemos muitos!). Mas as vidas negras que resistem foram celebradas! São em momentos assim que entendemos a importância da partilha. Para a população negra, "estar junto" é uma forma de se fortalecer.
O festival também celebrou nossas raízes africanas, ao realizar dois eventos no Simbaz, culinária afro e bar, unindo música e gastronomia. E esse ciclo de exaltação se encerra neste fim de semana, com a primeira exposição de temática racial do Museu de Arte de Brasília (MAB), após a reinauguração.
Existindo e Resistindo — uma celebração às vidas negras traz 13 obras, algumas delas produzidas durante a pandemia, que ressignificam o conceito de liberdade. São cinco artistas visuais do Distrito Federal, mostrando o que de mais contemporâneo está sendo produzido na capital do país. Entre os nomes, o internacionalmente celebrado Antonio Obá, com um desenho exclusivo e inédito, feito especialmente para o Festival Afro Urbano.
Durante dois dias, neste sábado (27) e domingo (28), o Distrito Federal terá a oportunidade de experienciar a cultura negra, essa potência que movimenta e sustenta todo um povo há milênios. Tudo regado a muita música, literatura, história infantil, apresentações de break e dança vogue. Porque de algum tipo de arte você gosta, não é possível!
Esse projeto está acontecendo porque pessoas como a administradora do Plano Piloto, Ilka Teodoro, e a proprietária do Caracas,véi, Meimei Bastos, duas mulheres negras, entendem a importância da celebração e viabilizaram espaços para o festival. Assim como o dono do restaurante Simbaz, o nigeriano Chidera Ifeanyi, que abriu as portas para nós.
Todo movimento cultural flui melhor com financiamento e como é uma iniciativa autônoma, tem vaquinha on-line para arrecadar doações que permitam remunerar artistas e arcar com alguns custos. O link para apoiar financeiramente está nas redes sociais da Cassangue Produções. Faça parte como você puder: curta as redes, vá ao MAB, contribua, apoie e seja Afro Urbano/a também. A mudança chega por meio de cada um de nós.