Por OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS - General de Divisão da Reserva
A leitura da famosa obra de Miguel de Cervantes, Dom Quixote de la Mancha, deveria ser obrigatória aos que assumissem o poder em nome do povo.
O pensar dos seus personagens, por vezes incompreendido nas frases desconexas da realidade, merecem reflexão como se fosse um vade-mécum de proceder diante dos desafios do governar.
Esta semana, folheando um surrado exemplar do livro, deparei-me com uma joia rara do ritual de aconselhar. Trata-se da carta enviada por Dom Quixote a Sancho Pança com observações de como comportar-se na cadeira de governador na Ilha da Barataria.
Com a aproximação das nossas escaramuças eleitorais, começarão a pipocar planos de governo mirabolantes e diretivas partidárias eivadas de obviedades que servem tão somente para cumprir tabela junto à justiça eleitoral.
Como somos uma sociedade que não valoriza os partidos políticos (eu prefiro chamá-los de agrupações partidárias) — por serem amorfos, temporários e descompromissados com os anseios da sociedade — votamos nas pessoas que pareçam melhor compreender e defender nossos sentimentos, ainda que de coloração ideológica diversa.
São para essas autoridades que ilumino trechos da missiva.
Escreveu Dom Quixote:"Para ganhar as vontades do povo que governas, entre outras coisas, duas hás de fazer: a primeira, ser bem-criado com todos, e isso já eu te recomendei..."
Aqui, os mal-criados são criticados. Quantos os temos em nosso país e que parecem jactar-se dessa postura deselegante?
"... a outra, procurar que haja abundância de mantimentos, porque não há coisa que mais fatigue o coração dos pobres do que a fome e a carestia."
A preocupação com a sobrevivência alimentar mostra-se presente na mensagem. Os níveis de famélicos no Brasil assomam a vinte e oito milhões de almas, números desumanos.
"Sê pai das virtudes e padrasto dos vícios. Não te mostres sempre rigoroso, nem sempre brando, e escolhe o meio termo entre esses dois extremos, que aí é que bate o ponto da discrição."
O equilíbrio na tomada de decisões é o caminho apontado pelo Cavaleiro da Triste Figura. O que se vê, entretanto, são constantes radicalismos insufladores dos que vivem exclusivamente para suas redomas.
"Veste-te bem, que um pau enfeitado já não parece um pau; não digo que tragas dixes nem galas, nem que, sendo juiz, te vistas como soldado, mas que te adornes com o fato que o teu ofício requer, contanto que seja limpo e bem composto."
Quando na pele de príncipe é dever honrar a liturgia do cargo. Atribulados comportamentos, sob a ótica de que quanto mais parecido com o simplório mais fácil dominar o simplório, é puro populismo.
"Visita os cárceres, os açougues e as praças, que a presença do governador em tais lugares é de muita importância […] assusta os carniceiros, que por essa ocasião não roubam no peso, e da mesma forma serve de espantalho às regateiras das praças."
Atento aos malfeitos dos desviados, dos corruptos incorrigíveis, o governante deve envidar esforços para deter comportamentos deploráveis pelo exemplo e força de sua imagem. Ao fugir dessa responsabilidade, arrisca-se a certificar sua amoralidade.
"Não te mostres cobiçoso, nem mulherengo, nem gulotão, porque em o povo sabendo o teu fraco, por aí te hão de bombardear, até te derribarem nas profundas da perdição."
Quixote induz Sancho Pança a agir conscientemente em conformidade com o conjunto de bons valores esperado pela sociedade. São muitas as autoridades do façam o que digo, embora elas não o façam. Do hoje vale, amanhã não vale. Do quem disse que eu disse isso?
O livro é recheado de outras passagens singelas que apontam na mesma direção do bem-servir aos seus súditos. Especialmente os capítulos que tratam da governança de Sancho Pança na Ilha da Barataria são pérolas que se assemelham a manuais de liderança.
Pois bem, senhores cidadãos que se submeterão ao escrutínio popular, "Deus te guarde de quem te queira magoar."
No intervalo entre um comício e outro, entre uma reunião e outra descansem carregando a pedra das proveitosas passagens de Cervantes.
Melhor que conversa fiada de apoiadores de ocasião ou comer pastel frio com café amargo, fingindo achar uma delícia.
Paz e bem!