OPINIÃO

Provocações, notícias falsas e a importância da História

Por CARLOS DA SILVA JR. — Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, presidente da Associação Brasileira de Estudos Africanos, integrante da Rede de Historiadorxs Negrxs

Todo mês de novembro no Brasil é a mesma coisa. Pipocam posts nas redes sociais de especialistas em escravidão que não se importam com o tema durante o ano inteiro afirmando: "Os africanos escravizavam africanos!" ou "Os africanos faziam tráfico, os portugueses nunca pisaram na África!". É coisa requentada à exaustão.

O tema é tratado em numerosas pesquisas de extrema qualidade produzidas sobretudo nas universidades públicas brasileiras. Ainda assim, há muita mistificação sobre o assunto em livros de divulgação, internet e imprensa. O pano de fundo é a dificuldade da sociedade brasileira em lidar com a tragédia humana do tráfico e da escravidão e suas consequências contemporâneas.

Estamos tratando de um sistema com várias faces. Há locais onde houve escravidão — a possibilidade jurídica de se possuir cativos — e escravismo, quando esse regime de trabalho dominava a economia. É o caso do Brasil, que a utilizou largamente durante três séculos e meio. A escravidão na África, por outro lado, é, ainda hoje, objeto de acalorados debates acadêmicos, ora pelo fato de ter sido uma entre as diversas formas de dependência existentes nas sociedades africanas, ora por ser um sistema de trabalho inteiramente novo. Além disso, a escravidão em larga escala não emergiu em todas as partes do continente, floresceu, principalmente, nas áreas mais integradas à economia atlântica. Noutras partes, mais para o interior, estudiosos labutam para compreender como ela funcionava.

Ao contrário da escravidão no Brasil, na África a situação foi bem mais complexa. Algumas regiões eram mais densamente escravistas que outras. Havia maior ou menor possibilidade de mobilidade social no cativeiro. Os cativos — principalmente as crianças — podiam ser incorporadas às famílias dos senhores, podiam ascender a posições de destaque nas hierarquias sociais e políticas locais. Enfim, havia mais diversidade na escravidão do que se imagina. Mas, muitas vezes, resume-se um debate complexo de forma simplista: africanos escravizavam africanos.

É necessário olhar para a África, a fonte de mão de obra das zonas produtoras de commodities nas Américas. Mas não esqueçamos que cada navio negreiro carregava interesses de muitos tipos de empresários. Os negreiros brasileiros carregaram mais de 40% de todas as pessoas deportadas do continente africano pelo tráfico. Estamos falando de cerca de cinco milhões de mulheres, homens e crianças, traficadas para o Brasil entre 1550 e 1850, segundo estimativas recentes. E é isso que se destaca na escravidão transatlântica: o seu caráter mercantil.

A demanda que regia esse negócio desde a Europa construiu feitorias comerciais no litoral da África Atlântica para facilitar o comércio com o interior, de onde vinha a maioria dos cativos. A expansão da escravização na África, entre os séculos XVI e XIX, é resultado direto da sede colonialista europeia por braços africanos, até mesmo fornecendo armas para guerras cujas vítimas eram transformadas em mercadorias para o tráfico. É nos engenhos de açúcar e fazendas de café, nas minas e nas cidades das colônias nas Américas que se deve procurar as causas históricas do tráfico negreiro e da escravidão.

Em 2022, celebram-se os 200 anos da independência brasileira. Livre do controle português, a jovem nação não abriu mão do tráfico, nem da escravidão. Pelo contrário, intensificou-os. Tornou-se, aliás, país conhecido por ignorar tratados celebrados com a Inglaterra para proibir o tráfico e libertar cativos ilegalmente traficados. O governo e o parlamento brasileiro fizeram vista grossa ao tráfico até não mais poder resistir à pressão dos ingleses e à rebeldia dos escravizados.

O tráfico e a escravidão destruíram comunidades inteiras no continente africano, deixando marcas profundas na sociedade brasileira, dentre as quais, o racismo. A responsabilidade pelo tráfico e pela escravidão não é da população branca de hoje, embora se espere que esta reconheça seus privilégios e se empenhe na luta antirracista. Ao Estado brasileiro, cabe implementar políticas públicas de reparação e promover uma educação antirracista. Quem sabe assim não precisaremos mais responder às mesmas velhas provocações e notícias falsas a cada novo novembro.

Em tempo: este artigo compõe a Ocupação da Rede de Historiadorxs Negrxs em veículos de comunicação de todo o Brasil neste 20 de novembro de 2021.

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