Por Dioclécio Campos Júnior - Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria, ex-presidente do Global Pediatric Education Consortium (GPEC)
Já está bem próxima a celebração de mais uma data comemorativa que se tornou tradicional na maioria dos países. Refiro-me ao consagrado "ano-novo". Trata-se, sem dúvida, de uma bela expressão. No entanto, seu conteúdo conceitual requer uma sólida abordagem reflexiva para proteger os seres humanos dos efeitos ilusórios a que são assim expostos.
De fato, os marcos cronológicos definem, com a palavra "ano", o conjunto de 365 dias sequenciais; com o termo "mês", os sucessivos, cada qual com seu nome próprio. Em síntese, um ano nada mais é do que a sequência de 365 dias, de 12 meses ou de 52 semanas. É uma invenção criativa da espécie Homo sapiens, que contribuiu para a abordagem mais objetiva do histórico da sociedade humana. Porém, os calendários, uniformizados internacionalmente, não são bons nem maus para a humanidade. Não podem mudar nada, são meros conceitos criados e adotados globalmente. Não são fontes de felicidade.
Torna-se claro que não há um ano realmente novo. Em relação ao tempo em curso, o que há, de fato, é mais um ano ou menos um ano em conformidade com a visão cronológica. Portanto, a afetuosa expressão "feliz ano-novo" é somente a transmissão de um sentimento humanista.
Na verdade, em respeito a todas as formas de altruísmo, vale destacar que a felicidade não advém apenas de mais um período de 365 dias. Requer, essencialmente, a prevalência de princípios morais e éticos para a reversão do materialismo consumista que escraviza a sociedade humana e da injustiça segregacionista que vitimiza os mais pobres.
Com efeito, ano-novo é o ano seguinte, não necessariamente novo. Para que o seja, o seu respectivo cenário social precisa ser modificado, principalmente em países como o nosso, nos quais a desigualdade é mantida e repetida anualmente, há séculos. Desejar feliz ano-novo às vítimas de tamanha e desumana injustiça não é, pois, a mais respeitosa relação para com o próximo. É um gesto inconsciente, destarte não doloso, de humilhação.
Um ano só poderá ser apelidado de "novo" caso a sociedade a que se refere esteja, de fato, conjugando efetivamente os verbos renovar e inovar. Do contrário, ocorrerá o prosseguimento do ano atual com toda a injustiça dominante, que pode se acentuar ainda mais. É a cultura política brasileira do "deixar do jeito que está para ver como é que fica".
Por isso, as classes dominantes do nosso país devem mudar sua postura a fim de que passem a ter uma digna e humana compostura. Para tanto, a missão mais nobre e improtelável, com a qual devem estar todos comprometidos, é a desconstrução da base histórica, cultural, econômica e social do grotesco cenário da desigualdade que tortura as classes pobres e mais numerosas do país. Ademais, devem aprimorar o padrão educacional a ser assegurado, sem nenhuma diferença, a todas as faixas etárias da população. Aliás, a deseducação é o maior equívoco que tem sido cometido pelos governantes para manter, de forma imutável, a cruel iniquidade social que coloca nossa nação entre as mais desiguais do mundo.
Na verdade, agentes políticos de nosso país precisam se reeducar para possuir um perfil de dignidade comportamental em favor da convergência das lideranças que, unificadas, possam desencadear medidas para construir a igualdade social da nossa população. As práticas imediatistas e de interesse pessoal não podem mais persistir porque se opõem ao conceito correto das ações verdadeiramente políticas, sempre em favor de todos os cidadãos.
Por isso, o imediatismo deve chegar ao fim o mais rapidamente possível. Além do mais, muitos dos nossos dirigentes entendem que a sua função prioritária é "fazer mais do mesmo". Ledo engano. Essa forma de governar não reconstruirá o país. Ao contrário, invalidará a maioria das propostas inovadoras capazes de reverter a decadência sócio-cultural e econômica de um país como o Brasil, que deveria ser deveras democrático e construtivo.
Assim sendo, confirmam-se os argumentos e reflexões acima desenvolvidos. Se o cenário atual persistir, o próximo ano será, para os sofridos brasileiros, o mesmo da trágica degradação da nossa sociedade, que se torna irrecuperável. Não há nada diferente que dê a necessária substância à bela expressão "Feliz ano-novo". Ao contrário, o país e sua cidadania continuarão na infeliz mesmice do "mais do mesmo".
Em conclusão, a capacidade reflexiva do ser humano é a fonte sublime de uma relação deveras altruísta a ser cultivada. Sem prioridade educacional igualitária, o ano novo será sempre uma pura ilusão.
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