opinião

Um exemplo em Muro Alto

Correio Braziliense
postado em 10/11/2021 06:00

Por OTÁVIO SANTANA DO RÊGO BARROS - General de Divisão R1

Escrevo do litoral sul de Pernambuco. Terra de boa gente, do Galo da Madrugada, de ótimas praias. A lua crescente se fortalece no horizonte. Ouço o ir e vir das ondas agitadas quebrando nas areias limpas de Muro Alto. Trago-lhes uma experiência desses dias.

Da mesa em que me encontrava, observei um senhor grisalho fixando fitas adesivas no chão de uma passarela. Elas alertariam um possível perigo naquela área. Media meticulosamente a distância entre faixas zebradas preta e amarela. Alisava com um pano úmido como se as acarinhasse em um lento ninar de filhos.

Fui ao encontro daquele "nativo". Queria cumprimentá-lo pelo dedicado trabalho. Abriu um largo sorriso. Agradeceu. Conversador, esticou o papo. Voltara a Ipojuca, após 25 anos de Brasília. Trabalhou na companhia de energia. A saudade e um "par ou ímpar" entre ele, sua mulher e três filhas deu o resultado esperado, quatro a um, contra ele. Pegou o ônibus e fez o caminho de volta.

Nesse emprego há quatro meses, é uma felicidade só. Não ganha nem de perto o que auferia em Santo Antônio do Descoberto, onde morou todo aquele tempo. Mas está, certamente, feliz. Descobrimos afinidades. O irmão foi sargento por 30 anos. Falei um pouco de minhas experiências. Não lhe revelei o meu posto. Nem ele me perguntou. Apenas ao final, quando a confiança se fortaleceu, me arguiu: e o senhor, o que é? Ao informá-lo, olhou-me com admiração e, sincero, disse-me: "Parabéns, merecido".

A refeição chegara, me despedi com encharcado respeito e ele me retribuiu com ardoroso: "Vá com Deus!" Caramba, sai dali impactado. A simplicidade, a transparência, a força para enfrentar desafios, a união da família, quantas bênçãos, quantos obstáculos. Seu Ângelo, como se apresentou, é um personagem desta peça chamada Brasil, em cartaz e encenada por nossa sociedade. Outros atores, os Josés, Chicos, Marias, Josefas, Carmos, todos querem viver, trabalhar, serem respeitados, terem dignidade. Não é muito. Mais tarde, quebrei a promessa de não ligar o iPad para ler notícias nesses dias de descanso. Tão logo acesso um site de jornal percebo que o seu Ângelo ainda sofrerá muito pela falta de homens públicos dignos de representá-lo.

— Seu cara de anta.

— Seu boca de fezes.

Uma costumeira troca de gentilezas entre autoridades do mais alto naipe da República.

Em outra manchete: "Ofereceram-me R$ 15 milhões, emendas RP9, para votar a favor do governo". Fiz um breve cálculo. A aprovação de uma PEC exige 308 votos na Câmara de Deputados e 41 votos no Senado Federal. Admitindo-se ser esse o preço mínimo a ser cobrado pela fidelidade, gastou-se neste infame jogo de interesses R$ 5.235.000.000.

Se o governo mantiver a palavra — nunca se sabe — e o valor do auxílio for fixado em R$ 400, mais 13.835.500 dependentes do Bolsa Família (não consigo chamar de auxílio Brasil, como não chamo o aeroporto do galeão de Antônio Carlos Jobim) poderiam receber uma parcela do que a sociedade há muito lhes deve.

E as dolorosas manchetes. Uma cantora no auge do sucesso e flor da idade, e um renomado pianista faleceram em circunstâncias distintas, ambas dolorosas. Autoridades que nunca demonstraram pruridos com perdas de vidas alheias se apresentaram em farisaica consternação a chorar um passamento, olvidando por completo o outro.

Enganar a quem? Até seu Ângelo sabe que a música sertaneja dá mais votos que a música clássica. É nauseante. Amanhã vou em busca de reencontrá-lo. Ele se mostrou um cidadão de bem. Por certo me sentirei melhor. Uma referência (mas sem esperança) aos ídolos de pés-de-barro, os políticos tupiniquins de carnaval. O iPad está trancado no armário e não tenho a chave.

Paz e bem!

 

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