Resistir. Um verbo forte, que exige muita energia, determinação e coragem. Resistir é um desafio diário para os negros conscientes e, ainda, subjugados e depreciados por um sistema desumano, não só no Brasil, mas na maioria das nações. Motivo: a pele que reveste suas vísceras, comuns a todos os humanos, é preta ou parda (uma cor indefinida para mim). Então, vale o velho ditado: "Escapou de branco, preto é". Por que falo sobre isso? Chegamos em novembro, mês consagrado à Consciência Negra, inspirada na resistência de Zumbi, do Quilombo de Palmares. Mas não só por isso. Como mulher negra, sou resultado da resistência de uma família de negros — uns mais retintos, outros nem tanto (pardos).
Lembro-me da minha bisavó, Palmira, e, só agora, a reconheço como um ícone familiar de resistência. Meu pai contou-me que ela nasceu no antigo Daomé, hoje República do Benin, no oeste do continente africano, integrante do povo jeje. Ela falava em iorubá, um dos vários idiomas daquele país, cuja língua oficial, hoje, é o francês. Esse detalhe explica o fato de eu nada entender o que a bisa conversava com minha vó Luiza, mãe de meu pai.
A bisa veio criança para o Brasil. Sequestrada em terras africanas, resistiu à travessia do Atlântico, para se juntar à leva de escravizados neste país. Provavelmente, desembarcou no Cais do Valongo, na zona portuária do Rio de Janeiro, considerado a principal porta de entrada do tráfico negreiro. Comprada por um fazendeiro do interior de Minas Gerais, foi levada para a cidade de Palmyra, hoje município de Santos Dumont, distante pouco mais de 200 quilômetros do Rio de Janeiro. Ali, ela se criou e se tornou mulher como escrava na casa grande.
Ela foi excepcional, fornecedora de mão de obra para o seu dono. Pariu 27 filhos, entre eles minha vó Luiza, gêmea da Tia China, ambas nascidas livres, favorecidas pela Lei do Ventre Livre — as únicas que conheci. Em 1961, a bisa dormiu e não acordou, ou melhor, despertou na dimensão etérea para o encontro com a ancestralidade. O desenlace foi no Rio de Janeiro, sede do império português, onde ela passou a viver, quando deixou Palmyra para festejar o suposto fim da escravidão com a proclamação da Lei Áurea.
Essa história tem muitas lacunas, que eu gostaria de preenchê-las para bem mais saber da minha ancestralidade. Acredito que igual carência se estende a muitos negros, principalmente aos que, por ignorar sua real origem, colocam-se como aliados dos escravagistas contemporâneos. Não conseguimos perceber que somos famélicos da história de nossos antepassados. A fome perturba a razão e nos torna reféns da desumanização, da ausência de valores civilizatórios. Novembro, todos os meses, dias e horas do ano são essenciais à recarga da nossa resistência aos obstáculos, derivados do racismo, do preconceito, das desigualdades, voltados ao apagamento da memória do nosso legado ancestral e à aniquilação do povo negro.
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