OPINIÃO

Calote nos precatórios: precisamos chamar as coisas pelos seus nomes

RENATO SILVEIRA - Presidente do Instituto de Advogados de São Paulo

A Comissão Especial que discute a PEC na Câmara aprovou substitutivo que conseguiu aquilo que se considerava impossível: piorar o que estava péssimo. A justificativa gera incredulidade: ao Correio Braziliense, o relator da medida disse que o substitutivo foi elaborado “porque não é interesse nosso regulamentar um calote a quem quer que seja”. Será mesmo?

São necessários alguns questionamentos fundamentais: quando se deve R$ 89 bilhões, mas apenas se paga metade disso — deixando o restante para os exercícios seguintes — o que se está a fazer? Se a Justiça determina que o governo pague determinada quantia em determinado prazo (imposto pela Constituição!) e tal prazo não é cumprido, o que se está fazendo? Ao esconder os precatórios inadimplidos do Orçamento — amordaçando o Judiciário e impedindo que precatórios sejam transmitidos pelos Tribunais ao Tesouro — o que se está fazendo?

As respostas são claras: calote, parcelamento, contabilidade criativa, pedalada. É disso que se trata. As coisas precisam ser chamadas por seus nomes, a despeito da ginástica argumentativa exercida pelos líderes do Legislativo e do Ministro da Economia. Vamos aos fatos.

Agora, os credores podem escolher qual calote querem levar. Segundo o substitutivo da PEC 23, os tribunais apenas poderão expedir precatórios até um determinado limite de valor (despesa com precatórios de 2016, acrescida da inflação). A parcela que exceder tal montante ficará represada indefinidamente no Judiciário, aguardando uma futura (e bastante incerta) folga orçamentária. Caso os credores queiram mesmo receber seus créditos no ano seguinte, o substitutivo generosamente oferece uma alternativa: basta conceder ao governo um singelo desconto de 40%. É pegar, ou largar.

Péssimo para os credores, pior para o país. Não há como negar: todas as soluções cogitadas pelo governo para o tema dos precatórios têm custo alto. Curiosamente, o Legislativo parece validar o maior deles. A redação original da PEC 23/2021 tinha como consequência a formação de estoque de precatórios caloteados da ordem de R$ 239 bilhões em 2029. Parece muito, não é? Pois bem. Dados da própria Câmara indicam que, se aprovado o substitutivo, chegaremos em 2029 com uma dívida judicial inadimplida de quase R$ 1,5 trilhão (vide Informativo 3, da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados). Em 20 anos, serão R$ 5 trilhões, valor atual da dívida pública. E por aí vai.

Mas como esse passivo será contabilizado? Esta é uma boa pergunta. Se os tribunais são impedidos de transmitir os precatórios ao Tesouro, esses montantes não aparecem no Orçamento, certo? Justamente. Como num passe de mágica, o resultado do calote cai num buraco negro, de onde sairá sabe-se lá quando. Contabilidade criativa em sua melhor forma, que nos faz lembrar de um passado recente, quando algo similar foi considerado crime de responsabilidade... Parece andar de bicicleta — passa tempo e parece que nunca se esquece como é pedalar.

Todo esse malabarismo aproveita alguém. Ou melhor, “alguns”. Que a proposta tem o fim populista eleitoreiro de viabilizar o novo Bolsa Família a R$ 400 mensais por família, isso não é segredo para ninguém. Mas o empenho do Congresso, ou de suas lideranças, em apressar a aprovação desse disparate normativo tem outra finalidade: liberar espaço orçamentário para as emendas do relator, verdadeiras ervas daninhas do Orçamento que destinam recursos públicos sem a transparência que se espera da administração pública

Não há verniz institucional que esconda os vícios da proposta. Com o avançar da PEC 23 na Câmara, nota-se que a eventual aprovação da medida pode retirar do Executivo a culpa por manobra tão duvidosa. Sem a roupagem do Legislativo, o presidente estaria “pedalando” rumo ao impeachment. Apoiado no ombro do Congresso, fica autorizado a pedalar mais tranquilamente, pois estará apenas cumprindo aquilo que lhe mandaram fazer. Mas, mesmo com todo o esforço no Congresso, os vícios da proposta estão claros para quem quer ver: calote constitucionalizado continua sendo calote. Quem diz é o Supremo, que, por muito menos, julgou inconstitucionais as emendas 30 e 62. E pedalar não deixa de ser, porque o Congresso diria diferente. Escamotear dívida judicial em valor trilionário não passará a ser comportamento legítimo, como um andar às claras. Continuará sendo pedalada fiscal.

A estabilidade econômica do país, a confiabilidade das nossas instituições e o Brasil das próximas gerações estão em risco. O que se está fazendo é oferecer uma “solução” gravíssima para uma questão circunstancial, que nos custará tremendamente. Há outras soluções possíveis, como a PEC alternativa proposta pelo deputado Marcelo Ramos, que permite o pagamento dos precatórios fora do teto de gastos (onde nunca deveriam ter entrado). Assegura-se o direito dos credores, indica-se que o governo é bom pagador e soluciona-se o problema de uma vez por todas. Não por outro motivo, conta com o apoio das comunidades econômica e jurídica — especialmente a OAB — evitando que a Constituição seja, mais uma vez, violada e que nosso futuro seja colocado em rota de colisão.