Na primeira página da edição de ontem, a manchete traz uma faixa preta em seis colunas, com o texto em letras vermelhas: Jovem relata horror do estupro coletivo. Em seguida vem o título: "Poderiam me matar". Uma ilustração complementa a chamada da capa. Nela, uma mulher branca, sentada no chão, chora, encolhida, enquanto é alvo de mãos pretas, que seriam de seus algozes. Mas a reportagem não traz informações sobre a cor da pele da vítima nem dos estupradores, o que o desenho faz, contribuindo para fortalecer um estereótipo que estigmatiza a população afrodescendente. A mesma imagem foi usada na página 15, que abre a editoria de Cidades. Nem o ilustrador nem os jornalistas envolvidos no trabalho de edição dessas páginas perceberam o racismo gritante explícito no desenho.
Leitores protestaram. E com razão. O Correio Braziliense errou. Um erro gravíssimo. E, como sempre faz em situações como essa, pede desculpas à sociedade e, em particular, aos pretos e pardos. Foi assim, por exemplo, há dois anos, quando coluna em homenagem ao Dia das Crianças não retratou a diversidade da população: nas fotos publicadas não havia negro, indígena ou pessoas com traços orientais. À época, o Correio reconheceu o erro e o fez em editorial, espaço que expressa a opinião do jornal.
Por isso, apenas pedir desculpa não é suficiente. Diante desse novo erro, o Correio vai buscar meios de intensificar a formação de seus jornalistas, para eliminar da redação o ranço histórico que associa o negativo a pessoas negras. Não que elas, assim como pessoas de qualquer cor, não cometam equívocos. Mas, em razão da cor, elas não podem ser transformadas em ícones da violência ou de quaisquer ações desprezíveis ante os valores civilizatórios exigidos hoje em nível planetário.
Nascido na mesma data da inauguração de Brasília, o Correio foi pioneiro pioneiro na luta contra o racismo, a homofobia, a discriminação social e de gênero. Quem lê o jornal sabe disso. Particularmente, na questão da discriminação racial, seus leitores são testemunhas do nosso empenho em combater o racismo estrutural, tão enraizado em parcela expressiva dos brasileiros. Um exemplo disso é o espaço cada vez maior para artigos afirmativos nas suas páginas, além de investir em reportagens especiais com foco no fim da discriminação e do preconceito, infelizmente ainda tão comum no jornalismo.
Em sua trilogia sobre a escravidão, o escritor Laurentino Gomes destaca: "Entre os países do Novo Mundo, o Brasil foi o que mais resistiu a acabar com o tráfico de pessoas e o último a abolir o cativeiro". De fato, a escravidão foi abolida no papel. Mas, na prática, de forma explícita ou velada, o racismo, o preconceito, o segregacionismo, a injustiça e suas sequelas perversas persistem até hoje entre nós. O Correio está na trincheira dos que lutam para que a humanidade supere essa página tão triste da história. O que aconteceu ontem mostra que mesmo os jornais que estão buscando uma política afirmativa, de diversidade, ainda precisam caminhar muito.