Opinião

Por que viemos?

Apequena história que conto aqui é rigorosamente verdadeira. Conta um pouco da vida de uma família de judeus em um país do leste europeu em um período particularmente conturbado. Na essência, contudo, vale para famílias italianas, alemãs, portuguesas e de tantos outros países que para cá vieram ao longo do século 20, antes, ou mais recentemente. Pediria que lessem levando em conta o que há de específico nessa família, mas também lembrando que a aventura humana é ampla e prolixa e que um olhar generoso para com os semelhantes pode ser, também, uma atitude inteligente.


Quando um filho é aprovado em um vestibular difícil, ou vence um torneio colegial de judô, ou tem uma reportagem publicada em uma revista de grande circulação, não há como não sentirmos orgulho. Dizemos que não temos méritos pelas conquistas dos filhotes. No fundo, achamos que temos, sim, e a vida segue.


Mas quando descobrimos que um avô, que nem chegamos a conhecer, pois morreu quando éramos muito pequenos, e que, três ou quatro anos depois de chegar ao Brasil, vindo da Polônia, era um pequeno produtor rural muito cuidadoso e recebeu um diploma de terceiro colocado em alfafa e menção honrosa em amendoim numa exposição agrícola, no Rio Grande do Sul, em 1931, temos convicção de que aí não há mérito que sobre para a gente, a não ser a sorte de ser descendente desse agricultor perfeccionista.


O pai do meu pai era um homem bonito, aparência mansa, olhos verdes tranquilos, barba e cabelos claros. Em uma pequena comunidade judaica da cidade de Prujane, onde morava, antes de emigrar para o Brasil, era considerado rico, por conta de uma máquina de beneficiamento de trigo que tinha. Quando os outros colhiam seu trigo, ou outro cereal, levavam até a máquina do Moishe Pinsky para separar a palha do grão e deixavam a paga em espécie. Com a venda dos produtos, meu avô sustentava não só seus seis filhos, como ainda três sobrinhos que foram deixados sob sua responsabilidade pelos parentes.


Não devia ser fácil para Paulina, sua esposa, que, segundo testemunhos, se empenhava em contar-lhe todas as coisas inadequadas perpetradas pelos garotos na ausência do pai. Paciente, Moishe costumava dizer para sua mulher: “Calma, Paulina, você vai ter muito tempo para me contar em detalhe as traquinagens e patifarias dos moleques, mas, por enquanto, vamos até o curral, onde vou ordenhar a vaca e tirar uma caneca de leite quentinho pra você relaxar. Depois conversamos”...
Mas a vida não era só tirar minha avó de suas preocupações imediatas. Nos últimos anos da década 1910 e os primeiros dos anos 1920, a região foi sacudida por uma forte reação dos “brancos” à Revolução Russa de outubro de 1917. Os bolcheviques, chamados de “vermelhos”, tentavam viabilizar seu projeto político por todo o antigo Império Czarista, que incluía, no lado ocidental, toda a faixa densamente habitada por judeus, a “cherta”, em russo, a “pale”, em inglês, uma longa e estreita faixa de terra, na direção norte-sul, em que judeus eram tolerados, uma vez que havia muitas restrições para sua presença na Rússia propriamente dita. A situação da população civil não era nada confortável, uma vez que os exércitos conflagrados não apenas se apropriavam de mantimentos como tratavam mal os camponeses, por eles terem “ajudado” o inimigo, como se isso tivesse sido uma opção voluntária, e não um constrangimento em que ameaças e força estavam presentes.


O limite foi ultrapassado quando um dos contingentes militares avisou que estava se apropriando da carroça e do cavalo que lá estavam. “Devolveremos”, disse o comandante das tropas, com um sorriso irônico descaradamente à mostra. De nada adiantaram argumentos e súplicas, carroça e animal de tiro eram fundamentais para o trabalho cotidiano, para a sobrevivência da família. “Melhor, então, vocês levarem meu filho Guershon, o animal está acostumado com ele”, disse meu avô. E assim foi feito.


Carroça, cavalo e filho mais velho desapareceram por longas semanas. Minha avó chorava, dizendo que seu marido era um pai desnaturado. As crianças interromperam as brincadeiras ruidosas. Depois de seis ou sete semanas, chega uma carroça lamurienta, um cavalo e um filho magérrimos, pele e osso. Nesse sábado, todas as crianças foram à sinagoga com sua roupa de festa. A família rezou, apoiada por toda a comunidade. Todo mundo chorou junto, e uma decisão foi tomada: “Chega de sofrimento, chega de perseguição. Vamos embora daqui. O lugar da América que nos receber será bom”. Assim, a família Pinsky veio ao Brasil.

 

*Historiador, professor titular da Unicamp e diretor da Editora Contexto