FLÁVIA REGINA DE SOUZA OLIVEIRA - Sócia da prática de organizações da sociedade civil, negócios sociais e direitos humanos do Mattos Filho, dedicada ao terceiro setor, à responsabilidade social e à ESG, prestando assessoria jurídica a entidades sem fins lucrativos nas mais diversas áreas
RENATA BISELLI - Superintendente no Santander Private Banking, responsável pela área de Sustainable Solutions, onde atua com ESG, filantropia familiar e fundos patrimoniais filantrópicos, auxiliando famílias e instituições sem fins lucrativos na concretização de seus legados
Após o incêndio do Museu Nacional, a sanção da Lei nº 13.800 nos dava a impressão de que a decolagem dos fundos patrimoniais no Brasil dependia, essencialmente, da previsão de regime tributário específico e de incentivos fiscais aos doadores. Ambas as medidas, porém, foram vetadas no processo de conversão da medida provisória em lei.
Desde então, pudemos observar um grande avanço, ainda que tenha ocorrido a manutenção dos vetos e a ausência de regulamentação para a utilização do único incentivo fiscal previsto, a lei federal de incentivo à cultura. Além de pessoas físicas e jurídicas interessadas em explorar o novo modelo, há iniciativas mais estruturantes que indicam uma potencial expansão do uso dessa nova estrutura. Governos, instituições públicas e outros atores relevantes podem utilizar recursos de origem privada para a realização de atividades de interesse público e social, multiplicando seu poder de impacto.
Um exemplo é a articulação que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) tem feito para que fontes alternativas de recursos, como os provenientes de Termos de Ajustamento de Conduta, acordos de leniência e privatizações, passem a compor fundos patrimoniais. A iniciativa endereça reivindicações antigas que demandam que esses recursos sejam destinados a finalidades sociais e de interesse geral. Considerando o atual momento do país, é especialmente oportuna a discussão sobre a destinação de recursos de eventuais privatizações para filantropia. Isso pode ser realizado por meio de fundos patrimoniais que garantam segurança, independência e perpetuidade dos recursos.
Imagine se as privatizações atualmente em discussão tivessem como contrapartida uma instituição de fundo patrimonial dedicada a apoiar o desenvolvimento da educação no país, a apoiar comunidades ribeirinhas ou a atividades específicas que mitigassem as eventuais externalidades negativas da respectiva privatização em locais de maior vulnerabilidade social. Nesse sentido, o fundo patrimonial é uma alternativa interessante que possibilita a gestão transparente dos recursos e de sua aplicação em finalidades de interesse social.
Outro indicativo de avanço do modelo é que o marco legal das startups, sancionado há poucos meses, permite que empresas que têm obrigações de investimento em inovação e P&D possam aportar esses recursos por meio de fundos patrimoniais destinados à inovação. Apesar de a matéria ainda não ter sido regulamentada, a previsão em lei aquece as discussões. De fato, num momento em que a inovação é tão propícia, a previsão de incentivo para a captação de recursos por fundos patrimoniais dedicados ao tema é uma notícia bem-vinda. O longo prazo, parece ainda ser uma fonte de esperança para o país, dado que o investimento em inovação já se revela como fator primordial para nosso desenvolvimento.
Temos espaço e, certamente, criatividade, para mais. Desde 2003, a Inglaterra, por exemplo, prevê que parte dos recursos aportados em loterias seja destinado para a criação de fundos patrimoniais. A Itália também seguiu nessa linha. Não seria incrível, por exemplo, se na famosa “Mega da Virada”, que arrecadou no último sorteio mais de R$ 1 bilhão, o governo destinasse 10% desse montante para um fundo patrimonial dedicado à saúde, à educação, ao meio ambiente, ao desenvolvimento científico ou a diversos outros temas, nos quais nosso país ainda é tão carente? Em um único sorteio, seriam mais de R$ 100 milhões destinados a uma causa. Se virasse moda, então, teríamos oportunidade de, em pouco tempo, criar fundos patrimoniais substanciais focados nos principais desafios sociais do país.
Temos no Brasil muitas oportunidades e nosso potencial ainda é pouco explorado. Uma outra forma importante e tradicional de captar recursos para fundos patrimoniais é por meio dos legados familiares. A conversa sobre patrimônio e sucessão nunca é fácil e, por si só, mexe com muitos sentimentos, experiências e, muitas vezes, conflitos pessoais. O tema da filantropia deve fazer parte deste momento e atuar como uma forma de perenizar a trajetória de uma família, dar sentido a toda uma existência, homenagear quem trilhou uma jornada exemplar antes de nós. Como retribuir para a sociedade? Constituindo ou doando para um fundo patrimonial.
A constituição de fundos patrimoniais por famílias também pode ser um processo interessante na dinâmica familiar, na definição sobre a instituição de um legado. As reflexões sobre os princípios, os valores e as causas importantes para a família geram a aproximação de diferentes gerações, proporcionando que todos rememorem a história e origem familiar e de seu patrimônio e projetem seus desejos e anseios futuros. A identificação dos valores comuns e de como juntos os integrantes da família podem impactar a sociedade, determinada região ou até uma instituição de grande importância para sua história é parte essencial na definição das iniciativas de investimento social familiar.
Em nossa atuação profissional, temos visto o modelo inspirar pessoas e organizações a pensarem a longo prazo, em como podem se estruturar para perpetuar suas ações e seus legados. A segurança do modelo desperta muito interesse dos stakeholders, apesar das barreiras para operacionalizar as regras impostas, como governança robusta, estrutura efetivamente segregada da instituição apoiada, rigidez quanto ao resgate e aplicação dos recursos.
Como entusiastas do modelo, nossa esperança é que os fundos patrimoniais conquistem o espaço adequado na sociedade brasileira para que empresas, famílias e instituições públicas possam se valer dessa estrutura para a realização de atividades de interesse público de forma segura, perene e sustentável. Os ganhos para o país são enormes e nossas possibilidades também.