Aconteceu em setembro, durante a semana de alto nível da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, a Cúpula dos Sistemas Alimentares, considerada uma oportunidade histórica para fortalecer os sistemas alimentares e colocar os objetivos de desenvolvimento global de volta nos trilhos, no pós-pandemia de covid-19. O evento foi marcado pelo insistente crescimento da insegurança alimentar, que fez o mundo alcançar 811 milhões de famintos durante a crise sanitária, situação agravada pelo crescente número de países que sofrem com um duplo fardo — da desnutrição coexistindo com o sobrepeso, a obesidade e doenças não transmissíveis relacionadas à dieta.
Eventos, como a Cúpula dos Sistemas Alimentares, são importantes para se discutir problemas complexos de grande abrangência e ações coordenadas para superá-los. No entanto, está se tornando comum colher de tais encontros apenas compromissos vagos e não mensuráveis, que não permitem responsabilizar governos, organizações e empresas com a solução de problemas globais prementes. O enfraquecimento das organizações multilaterais, a perplexidade e a inação das lideranças globais só fortalecem a percepção de que sérios problemas da atualidade, como a fome, a desnutrição, os riscos sanitários e a crise climática, seguirão se agravando de forma descontrolada.
A esse quadro se soma o desgaste do atual paradigma econômico, que faz crescer de forma escandalosa as assimetrias na sociedade. O capitalismo movido pelo desejo insaciável de acumulação tem sua irracionalidade autofágica exposta de inúmeras maneiras, como na atitude de países ricos que acumulam ou deixam perder vacinas contra o coronavírus, em vez de auxiliar países de baixa renda a acessá-las. Solidariedade que garantiria uma recuperação global mais rápida e uniforme, essencial para a retomada do crescimento econômico no pós-pandemia.
Deveria ser impensável que durante uma pandemia global os muito ricos ficassem ainda mais ricos. Mas estima-se que os maiores bilionários do mundo ganharam, desde o início da crise, dinheiro suficiente para vacinar toda a população do planeta várias vezes, sem tocar na sua fortuna original. E o pior é que a maioria dessas fortunas se formaram a partir de investimentos no mercado financeiro, não significando ganhos para a sociedade como um todo. É riqueza que tem pouco impacto na capacidade produtiva da economia, na geração de empregos e na redução da pobreza.
O crescimento da desnutrição e da fome e o absurdo aprofundamento das assimetrias entre ricos e pobres mostram, como nunca, que há um sério erro de design no modelo econômico corrente. É, por exemplo, extremamente incômodo que uma potência agrícola como o Brasil, que exporta alimentos para centenas de mercados ao redor do mundo, ainda tenha número significativo de seus cidadãos em situação de insegurança alimentar. Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, realizada antes da pandemia, entre 2017 e 2018, determinou que cerca de 41% da população brasileira, ou 84,9 milhões de pessoas, à época, conviviam com fome ou algum grau de insegurança alimentar. E são abundantes os sinais de que, com a pandemia, a persistência do desemprego e a elevação da inflação, a insegurança alimentar está ainda mais agravada no Brasil.
A empresa global de consultoria Edelman entrevistou, entre outubro e novembro de 2019, 34 mil pessoas em 28 países, e descobriu que 56% dos entrevistados concordaram que “o capitalismo como existe hoje faz mais mal do que bem para o mundo”. E mais, que o aumento da desigualdade está levando as pessoas a confiarem menos nas instituições e a experimentarem crescente sentimento de injustiça. Há, por todos os lados, sinais de insatisfação com as persistentes imperfeições nos modelos econômicos dominantes — que muitas vezes tolhem oportunidades e inibem competição livre e justa, ou toleram externalidades, como os danos ambientais que agravam a crise climática e comprometem qualidade de vida em todo o mundo.
E como os mercados não se policiam, o mundo precisa mais que nunca de governos transparentes, capazes e democraticamente responsáveis, que assegurem que o capitalismo e o livre mercado não sejam usados em favor de minorias, mas, ao contrário, produzam valor e progresso que possam ser melhor distribuídos por toda a sociedade. E como o acesso ao alimento está na base da estabilidade e da paz no mundo, é essencial que os governos deem atenção equilibrada à agricultura empresarial e ao agronegócio gerador de riquezas, à agricultura de menor escala que garante capilaridade à produção e à distribuição de alimentos, aos estoques reguladores e a políticas e programas de segurança alimentar centrados nas populações mais pobres e vulneráveis.
Ninguém, ao ser confrontado com a incômoda realidade da fome e da desigualdade, deveria concluir que esses são males inevitáveis, por estarmos submetidos à lógica dos mercados em uma economia capitalista e globalizada. Encontrar maneiras criativas de corrigir os erros de design, que fazem do modelo econômico corrente um dos elementos promotores da desigualdade e da insegurança alimentar, seria a melhor maneira de garantir mais relevância ao capitalismo, paradigma que, ao que tudo indica, continuará reinando no futuro.
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