OPINIÃO

Da obscuridade ao acesso linguístico, como aprender Libras mudou minha vida

CRISIANE BEZ BATTI - Coordenadora-geral de Política Pedagógica da Educação Bilíngue do Ministério da Educação

Minha trajetória até eu me identificar como uma mulher surda, sinalizante, foi longa. Acredito que é uma dificuldade também para muitos surdos como eu, que levam muito tempo para serem diagnosticados como surdos. Minha família nunca teve uma definição certa de como me tornei surda. Até os seis anos, eu me recordo que faziam inclusive simpatias para me “curar”, para que começasse a falar como todas as crianças da minha idade… Mas isso nunca aconteceu.

O processo de diagnóstico para surdez levou muito tempo. Como eu não conseguia me comunicar, eu me irritava com muita facilidade na escola e era constantemente castigada. Passei por vários médicos que diziam para minha mãe que o que eu tinha era um problema psicológico, e não surdez. Quando, por fim, eu fui diagnosticada como surda, tardiamente, enfrentei o tratamento que a maioria dos surdos da minha idade já enfrentou — o treino oral — para aprender a falar. É um processo cansativo e difícil.

Na escola, era duro não ter comunicação e ver que eu ficava para trás, enquanto meus colegas iam para as outras séries. Sofria bullying todos os dias e lembro-me dessa época com muita tristeza. O grande problema de crescer como uma criança surda, tardiamente diagnosticada e sem input linguístico na Língua de Sinais é que você cresce sem entender os conceitos das coisas. Alguns surdos, como eu, até aprendem a oralizar, mas, muitas vezes, não entendem os conceitos e os significados daquilo que verbalizam.

O aprendizado de uma língua que seja confortável — no caso dos surdos, a língua de sinais — é vital para o desenvolvimento em muitas áreas da vida. É muito triste não ter acesso ao mundo e às informações porque te negaram uma língua. Já adulta, fiz um implante coclear, confiando em falsas promessas de que ele me “curaria”. Depois da cirurgia minha vida não ficou mais fácil nem passei a entender melhor o mundo ao meu redor. Foi no curso de pedagogia que tive minha primeira disciplina de libras e meu primeiro contato com a língua.

Mas foi frequentando a Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE) e conhecendo outros surdos sinalizantes e mais tarde na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), matriculada no curso letras libras — que o universo linguístico da Libras se abriu para mim. Quando aprendi a língua de sinais, passei a entender muitas coisas que antes não entendia. Pude olhar para meu passado e dar novos significados às coisas que passei… Até hoje, pego-me conhecendo o significado de palavras que sei escrever e falar, mas que foi a Libras que pôde me esclarecer o sentido. Passei a militar pela causa surda em Laguna, cidade de minha residência na época, e criamos a Associação de Pais e Amigos de Surdos de Laguna (Alpas).

Com essa experiência, pude ter contato com muitos surdos que foram privados da Libras e tinham imensos problemas de comunicação, além de não conseguirem acessar os serviços públicos básicos, porque não tinham intérpretes. Essa vivência me preparou para lutas maiores. A trajetória acadêmica me levou para a Diretoria de Políticas Educação Bilíngue de Surdos (DIPEBS), por meio de um convite de Karin Strobel, professora surda, referência na área dos estudos surdos. Foi um caminho novo, de muita responsabilidade e que eu não imaginava jamais que trilharia. Porém, quando a oportunidade de trabalhar na equipe me foi estendida, me senti não só honrada, mas também com a grande responsabilidade de difundir a Libras e a cultura surda. Para além disso, de trabalhar para que nas escolas os surdos tenham acesso à Libras o mais precocemente possível, para que não tenham experiências duras como a minha, privados do direito básico de exercer sua cidadania, de se comunicar e de acessar o mundo.

A Dipebs tem vários projetos voltados para o fortalecimento de políticas bilíngues de surdos. Nossos projetos vão desde o apoio às escolas bilíngues, onde a língua de sinais é a língua de comunicação, interação e expressão, como de parcerias para a criação de documentos norteadores na área e de cursos de formação. Há muito trabalho para ser feito e, como todo trabalho, que envolve uma diretoria transversal, leva tempo.

Mas sinto-me muito orgulhosa do que conseguimos e de ver representantes surdos, exercendo protagonismo no governo — algo que vimos muito pouco até hoje. A sociedade é muito capacitista. E ainda vê os surdos como pessoas a quem falta algo — a audição. Porém, não nos identificamos na falta. Somos pessoas que nos comunicamos por meio de uma outra língua. Se a sociedade se abrir para essa ideia, nossa vida será muito mais fácil, e muitas barreiras serão eliminadas. Hoje, depois de todas essas experiências, eu compreendo que a comunidade surda é fundamental na minha vida, pois me possibilita a construção do meu ideal de futuro, redefinindo minha voz e atitude em relação às dificuldades, desafios e obstáculos.

Desejo e luto para que os meus pares surdos possam viver com mais dignidade, que não se sintam deficientes ou incapazes, e, sim, como sujeitos surdos, que têm identidades surdas e culturais. Faço minhas as palavras de Emmanuelle Laborit (1994): “Recuso-me a ser considerada excepcional, deficiente. Não sou. Sou surda. Para mim, a língua de sinais corresponde à minha voz, e meus olhos são meus ouvidos. Sinceramente, nada me falta. É a sociedade quem me torna excepcional”.