ORLANDO THOMÉ CORDEIRO -Consultor em estratégia
Na última terça-feira, o mundo viu o discurso presidencial na abertura da 76ª Assembleia-Geral das Nações Unidas. Muito se especulou sobre qual seria o conteúdo, com alguns aliados torcendo por um tom menos beligerante, mas a realidade se impôs. Acuado no cenário nacional, com a aprovação de seu governo em queda contínua, o presidente resolveu utilizar a viagem para falar exclusivamente com sua base de apoiadores, transformando a ONU numa extensão do “cercadinho”. Afinal, era preciso retomar o protagonismo da narrativa, após a nota escrita por Temer ter provocado um clima de barata voa entre seus seguidores.
A cronologia dos fatos ajuda a entender: dia 7 de setembro, manifestações com discurso radicalizado; dia 8, reação dos presidentes dos outros Poderes; dia 9, a carta com pedidos de desculpas; no mesmo dia 9, em sua live, à noite, os comentários de apoiadores no chat alternavam decepção e críticas pesadas. Cresceram nas redes publicações agressivas, com apoiadores deixando clara sua decepção, chegando a acusá-lo de traidor e frouxo. Sem dúvida, aquela foi uma semana atípica, e ele precisava de uma resposta que fosse capaz de reorganizar a tropa.
O contra-ataque organizado pelo grupo responsável por criar e difundir suas mensagens nas redes sociais copiou o padrão de Trump, passando a explorar a ideia de que as pessoas precisavam confiar cegamente, porque nem tudo podia ser divulgado, mas, com certeza, ele sabia o que estava fazendo. Dando forma a essa linha de argumentação, fizeram circular vídeos com diversas versões, com dois deles tendo sido os mais veiculados.
Um mostrava por A+B que o recuo foi necessário para poder salvar o Brasil, impedindo a entrega do país aos chineses. Outro informava que, ainda naquela semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) relaxaria as medidas contra os investigados no inquérito das fake news, incluindo a revogação do mandado de prisão daquele personagem conhecido como Zé Trovão. Dando seguimento à tática, o próprio Bolsonaro passou a anunciar, reiteradamente, na semana anterior à viagem, que na ONU mostraria as verdades sobre o Brasil que o mundo desconhecia.
Chegando a Nova York, ele e sua desproporcional delegação fizeram movimentos pensados e conhecidos. Primeiro foram comer pizza na rua, procurando mostrar que era um sujeito do povo, repetindo a cena registrada em Davos, dois anos antes, quando deixou de lado os demais chefes de Estado, indo almoçar em um restaurante popular. No dia seguinte, em encontro bilateral com Boris Johnson, fez questão de mostrar com orgulho que não estava vacinado. E o gran finale foi seu discurso na ONU. Ou seja, tudo absolutamente previsível. Porém, o que impressiona é ver boa parte da mídia e da oposição passarem esses dias repercutindo todos esses fatos previamente programados por ele. Mais uma vez, caem na armadilha e, indiretamente, acabam por ajudar a manter sua base de apoio animada.
Entretanto, pouco destaque tem sido dado a outro objetivo estratégico que explica sua postura durante a estadia por lá. Após a derrota de Trump, Bolsonaro vem tentando se consolidar como uma referência mundial das correntes de pensamento de ultradireita. Esse é o motivo principal da presença do seu filho Eduardo em praticamente todas as viagens ao exterior, além de ser uma das principais lideranças do CPAC — American Conservative Union —, uma organização conservadora internacional.
Essa articulação é consequência direta da constatação que, mesmo com a eventual derrota no projeto de reeleição, o bolsonarismo continuará tendo presença significativa na sociedade brasileira, assim como o trumpismo nos EUA. Paralelamente, no rastro da crise econômica decorrente da pandemia, está em curso uma nova onda de crescimento dos partidos nacional-populistas na Europa e na Ásia, que se somam à consolidação dos governos de Orban, na Hungria; de Erdogan, na Turquia; e de Modri, na Índia.
Nesse cenário, é impositivo que as forças democráticas brasileiras coloquem na ordem do dia a necessidade de trabalhar, com afinco, para construir a unidade em torno da defesa da democracia liberal e das instituições republicanas, alvos de constantes ataques do presidente e de seus apoiadores. É fato que, mesmo as pesquisas apontando o apoio da maioria da população, o impeachment está cada vez mais improvável. Além disso, o agravamento da crise na economia e na política tende a criar as condições para frustrar os planos de sua reeleição. E, se alguma candidatura da intitulada terceira via se tornar competitiva, Bolsonaro corre sério risco de ficar de fora do segundo turno.