“Por que o Brasil de repente deixou de querer ser futuro para ser uma visão mal-assombrada do próprio passado?” Chega ágil, via torpedo, a pergunta de uma amiga carioca de 90 anos, muito bem vividos, diga-se de passagem.
Ainda com gosto de ressaca de um plantão puxado, já deixo claro meu incômodo com a pergunta: “Vamos parar de falar desse show de horrores que foi o 7 de Setembro e falar de vida. Estou cansada!”. Minha amiga provoca: “Que vida?” Eu ainda tento me desvencilhar: “Tem um sol lindo lá fora me chamando para uma caminhada”. O meu otimismo sussurra e penso em corrigir a amiga: “Boa parte do Brasil ainda deseja o futuro. Nem todos pegaram carona nesse trem fantasma desgovernado”. Mas aqui por dentro também questiono: “Como vamos contar para as crianças de hoje o que acontece num país que esquece as 600 mil vidas perdidas, que incita o ódio, que reforça a não verdade descaradamente?”. Devolvo a pergunta a ela.
A conversa flui para as origens dos nossos esquecimentos crônicos. Ela insiste que sofremos de má-fé, mas também de ignorância sistêmica: “Somos frutos de uma história narrada por homens brancos, machistas e cheios de privilégios. Uma casta de bem-nascidos ou bem-sucedidos financeiramente com burrice crônica, que não admite se sentar ao lado de pobres no avião, nem lavar as próprias cuecas”.
Sim, o Brasil se tornou o país que alimenta o ódio a partir de uma desigualdade crônica e cruel. É também um país que nega e renega. Na perspectiva de quem deseja não ver, é fácil ignorar que roubamos índios, que ainda escravizamos negros, matamos mulheres e travestis em série, negamos a liberdade de se amar independentemente de sexualidade, destruímos florestas, duvidamos da ciência.
Ignoramos que torturamos e matamos pessoas na ditadura militar. Como pontua minha amiga: “Não abrimos arquivos, anistiamos assassinos e, assim, convivemos com uma história fictícia, que surrupia as provas do terror”. Fica mais fácil assim deglutir a sugestão de alimentar famintos com fuzis e vestir as cores de um Brasil que perde a cada dia a chance de se reinventar.
O que se viu no 7 de Setembro foi algo que pode ser tipificado — porque há transgressão clara de propósitos, regramentos, leis e bom senso. O que se viu depois disso foi um arremedo de desculpas para ganhar tempo. O que veremos sempre, se não recuperarmos a nossa história dolorosa e reconhecermos o Brasil do atraso, é um messias qualquer ditando os rumos do nosso futuro. Minha amiga está certa.