FRANCISCO BALESTRIN - Médico e presidente do Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios do Estado de São Paulo
“ As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis.”
Frase de Umberto Eco, escrita em 2015
Receitas milagrosas, curandeiros e seus seguidores sempre existiram. Tanta informação falsa sobre saúde foi propagada que as fake news são, em realidade, notícia velha. A primeira mentira globalizada de que se tem notícia surgiu há cerca de 100 anos, durante a pandemia de gripe espanhola, que de espanhola não tinha nada. Hoje, há forte indício de que os primeiros casos da doença tenham sido registrados em um batalhão militar na cidade de Kansas, nos Estados Unidos (EUA), e o fato não foi divulgado por causa da imprensa censurada durante a Primeira Guerra. A Espanha pré-franquista noticiou a doença e acabou “emprestando” a ela sua nacionalidade.
A origem era mentirosa, mas a mortalidade do vírus influenza não: ele se espalhou com tanta velocidade que, entre 1918 e 1919, matou 50 milhões de pessoas no mundo todo, ou 3% da população mundial na época. É como se hoje o coronavírus fizesse 210 milhões de vítimas fatais (sendo que os 4,4 milhões de óbitos por covid-19 registrados no mundo até agosto/2021 já são suficientemente trágicos).
O conhecimento científico não era avançado como hoje, e não contávamos com grandes órgãos informativos para divulgá-lo. Talvez por isso as falsas informações foram tão propagadas à época, de receitas caseiras infalíveis à ideia que quase ninguém seria atingido. Neste um século desde então, a ciência se expandiu e se impôs contra as mentiras disseminadas. Mas assistimos, novamente, a uma parcela considerável da população criando e difundindo, novamente, desinformação. Por coincidência, estamos mais uma vez imersos em uma pandemia, como se grandes crises mundiais incitassem fake news.
Hoje, a situação é um pouco diferente: há uma robusta estrutura de conhecimento por trás das fake news. Mas observamos o mesmo grau de superstição, incompreensão e politização em relação a um assunto de saúde pública; um assunto que é técnico e que, portanto, não está sujeito a crenças e convicções. E, além do completo desconhecimento técnico-científico de muitos, assistimos à ostentação da ignorância, em especial nas redes sociais. Umberto Eco que o diga. Mas, como tem acontecido nos últimos 100 anos, a saúde vai sobreviver.
De 1918 para cá, foram muitos os embates entre o conhecimento científico e as fake news. Doenças que assustaram a população, como o sarampo, a poliomielite, a febre amarela, o zika vírus, a dengue e, sobretudo, o HIV, foram alvo de toda sorte de afirmações ignorantes a seu respeito. Com o tempo, todas elas foram derrotadas pela ciência.
O atraso da vez vem na forma de movimentos antivacina e da contestação a protocolos mundialmente aprovados e comprovados. São essas as feições contemporâneas do reacionarismo técnico-científico. Somos levados a crer que existe uma visão progressista e uma conservadora em relação à covid-19 e às vacinas contra covid-19. No entanto, essas são matérias estritamente técnicas (e, mais uma vez, não sujeitas a pontos de vista). O que há para além do conhecimento técnico é crendice, apoiada por uma parcela da população que inclui até mesmo médicos, já que alguns levam seu pensamento ideológico para dentro da profissão.
Para evitar que a percepção política ultrapasse a científica, o caminho é investir na formação técnica e humanista do profissional de saúde, especialmente com o resgate de aulas de ética e deontologia médica. A alta demanda por profissionais tem tornado o ensino médico mais relativo e menos aprofundado. Ao mesmo tempo, a redução no número de hospitais-escolas para treinamento tem resultado em um deficit de formação. Justamente por ser bastante árduo, o trabalho com a saúde requer muito conhecimento, além, claro, de paixão e vocação. Mas, outra ciência — a história —, nos sugere que, apesar da tristeza e da adversidade atuais, em breve voltaremos a conviver em paz e harmonia com a saúde. E ela, mais uma vez, sairá fortalecida.
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