CRISTOVAM BUARQUE - Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação
Durante 350 anos, os estrangeiros se espantaram com a escravidão e com o fato de os brasileiros não se espantarem com o tratamento dado aos escravos. Se um visitante comentasse o assunto, o brasileiro branco diria: “São negros”. Passados 133 anos da abolição, se algum estrangeiro comenta a má educação recebida por alunos das escolas públicas, ouve como resposta: “São pobres”.
Espanta os turistas como em nossas praias convivem banhistas ao lado de trabalhadores servindo sob o sol e sobre a areia, vendendo o que a moderna indústria oferece. Se o visitante estrangeiro disser “vocês ainda mantém privilégios do tempo da escravidão”, os brasileiros respondem: “Mas precisam desse trabalho para sobreviver”. Os escravos também. Ao voltar do século 19 ao século 21, o visitante pensaria que a escravidão continua como se as algemas fossem invisíveis.
A ideia de que a escola deve ter a mesma qualidade, independentemente da renda e do endereço da criança, espanta tanto quanto no século 19 espantava a ideia de negros e brancos terem os mesmos direitos. Espantaria quem dissesse que os resquícios da escravidão decorrem da desigualdade no acesso à educação.
Nós, brasileiros, não nos espantamos que os republicanos tenham escrito lema, na bandeira que desenharam, sabendo que naquela época 6,5 milhões de adultos, 65% da população, não sabiam ler, nem mesmo o “Ordem e Progresso”. Aos estrangeiros, causa espanto que, 132 anos depois, temos 12 milhões de adultos que não sabem ler a própria bandeira. O espanto só chega para quem tem olhos para vê-lo, percepção para senti-lo como algo estranho.
Qualquer pessoa, salvo os próprios brasileiros, se espantaria ao ver a notícia de que o Brasil é o maior exportador de alimentos do mundo, seguida da informação de que dezenas de milhões passam fome todos os dias. Ainda mais ao ver, no mesmo noticiário da televisão, ao lado de famílias com fome, publicidade de competições entre candidatos a chefes de cozinha. Espanta que, apesar de milhões de desempregados sem salários, os empregados e patrões com altos salários recebem vales para pagar alimentação nos mais caros restaurantes, com dinheiro de impostos que os desempregados também pagam. Os estrangeiros se espantam quando sabem que os encarregados de zelar pelos interesses do povo — parlamentares, governantes, juízes, inclusive servidores da rede pública — usam seguro de saúde privada pago pelo setor público como forma de se proteger da má qualidade dos serviços que oferecem ao público.
Percebemos a injustiça de jovens que fazem o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em condições precárias por falta de aulas durante a pandemia, mas espanta a falta de espanto diante de pelo menos 80 milhões de brasileiros impedidos de se inscrever, porque ficaram para trás, sem um ensino médio minimamente satisfatório. Espanta a preocupação maior para entrar na universidade do que para abolir o analfabetismo. O Brasil que espantava por não se espantar com a escravidão, agora espanta por não se espantar com a imensa maioria de sua população analfabeta para o mundo contemporâneo: sem falar um idioma estrangeiro, sem saber as bases da ciência, da matemática, conhecer os problemas do mundo contemporâneo e sem um ofício que lhe permita emprego e renda.
Os estrangeiros se espantam que o Brasil seja capaz de contabilizar 100 milhões de votos em poucas horas, e esses votos elejam presidente contrário à democracia que o elegeu. Espanta que o espetáculo tecnológico da contagem eletrônica dos votos não garanta a posse do eleito, se militares e milícias não estiverem de acordo com o resultado; também que o pagamento de contas pelo sistema Pix fique prejudicado pelo clima de violência e criminalidade.
Parece que é permanente e ilimitada a capacidade brasileira de espantar ao mundo, sem se espantar aqui dentro. Nesta semana, os brasileiros comemoram o último 7 de Setembro de seu segundo centenário espantando o mundo pelas realizações de nosso desenvolvimento e por nossa negação em distribuir os resultados do que realizamos, caindo em um abismo histórico. Por falta de espanto com a concentração e privilégios, não fazemos a distribuição necessária para construir um futuro com coesão e rumo, vitalidade nacional e inclusão social.
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