MIKELLI MARZZINI L. A. RIBEIRO*
Em pouco mais de duas semanas, o Talibã assumiu o controle de 26 das 34 capitais de províncias do país. Quase vinte anos depois dos atentados de 11 de setembro, o que fica é o retrocesso. Que o Talibã retomaria o poder após certo tempo, era algo previsto pelos próprios analistas norte-americanos. Porém, provavelmente, nem o relatório mais pessimista do Pentágono vislumbrou uma tomada de assalto tão rápida, uma verdadeira blitzkrieg — o governo Biden estimava que a resistência duraria aproximadamente dezoito meses. O que houve de errado? Vários são os diagnósticos preliminares. Mas o fato é que o desfecho desastroso é decorrente de uma conjunção de fatores.
Os Estados Unidos calcularam a resistência do governo afegão com base em elementos tangíveis, como a capacidade bélica do governo, herdada da parceria com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Porém falharam no diagnóstico dos elementos não tangíveis. Não contaram com a estratégia do Talibã de pulverizar suas ações, tornando inviável a resistência afegã. Subestimaram a eficiência das táticas de negociação do Talibã perante locais. Relativizaram o efeito da corrupção endêmica do governo e das forças armadas — a venda de combustível e armamentos para o mercado clandestino, inclusive ao próprio Talibã, se tornou negócio corriqueiro. Não contaram com o efeito que todos esses problemas estruturais teriam ao moral das tropas, que, em boa medida, preferiram negociar sua rendição, na esperança de uma anistia prometida, em vez de lutar por um governo que não os representava.
A questão fica ainda mais complexa quando grandes potências, como Rússia e China, compreendendo a inevitabilidade de um governo Talibã, iniciaram suas políticas de controle de danos engajando-se em conversas com o Talibã. Controle de danos porque, para esses países, o importante é que grupos terroristas não se espalhem para alimentar células radicais domésticas, como as da região da Chechênia, na Rússia, ou de Xinjiang, na China. Controle de danos inclusive feito pelos próprios Estados Unidos que, em fevereiro do ano passado, concluíram em acordo com o Talibã, para que não abrigassem mais grupos terroristas — Trump chegou a dizer que merecia um prêmio Nobel por esse acordo.
Os norte-americanos se livram de uma ocupação extremamente impopular. Mas, fora a humilhação televisionada internacionalmente, o custo efetivo de tudo isso recai sobre os cidadãos afegãos — principalmente as cidadãs. Desde maio de 2021, quase 4 mil civis foram mortos ou mutilados decorrentes da ofensiva do grupo (e das respostas do governo). O Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) estima que 400 mil pessoas tiveram de deixar suas casas só em 2021, mesmo antes da tomada Cabul. Desse número, 80% são mulheres e crianças. De acordo com o Acnur, há relatos de ataques a escolas e clínicas médicas, a grupos minoritários como os Hazaras e de execuções sumárias de militares e membros do governo afegão — a despeito da promessa do Talibã de anistia geral.
A emergência do Talibã é particularmente desesperadora quando se pensa nas mulheres. Apesar de o grupo prometer respeitar o direito de mulheres e meninas — mesmo que de acordo com lei islâmica mais radical — os relatos iniciais demonstram graves violações. Em várias províncias, mulheres e meninas já enfrentam privações semelhantes às de vinte anos atrás. Elas já são vítimas de casamento forçado com combatentes (muitas vezes crianças de 12, 14 anos), de restrição de livre circulação (só podendo sair de casa com acompanhante masculino), e começam a ser proibidas de frequentar escolas e universidades. Funcionárias da ONU foram aconselhadas a trabalhar em casa, sob o argumento de líderes do Talibã de que seus soldados não estavam “treinados” para o convívio com mulheres nessa condição.
Para se ter uma ideia, a versão da lei islâmica do Talibã é mais radical do que a de países que restringem sistematicamente os direitos das mulheres, como a Arábia Saudita, onde mulheres vivem, na prática, um regime de apartheid. Na concepção da sharia adotada pelo Talibã, as mulheres devem cobrir o corpo totalmente em público (uso da burca), podendo receber punições severas, como morte por apedrejamento em casos de adultério. A paz do Talibã é uma paz da segregação, da repressão, da perseguição; em suma, é a paz do medo. O nível de cinismo da nova roupagem “moderada” — um moderado soube o auspício da versão mais radical da sharia — é um escárnio para a comunidade internacional.
*Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador do Observatório de Crises Internacionais