opinião

Artigo: Da façanha despertar

JOSÉ ALBERTO SANTOS DA SILVA*

Façanha gaúcha foi convencer o país de que os arianos chegados no século 19, porque atrapalhavam o progresso da Europa, são autóctones desta terra, como se não houvesse antes nações indígenas ou negros, vindos estes já com Dom Manuel Lobo em 1680. A ciência decifra enigmas quânticos, e o gaúcho quer separar o estado do Brasil por rejeitar semelhança com outros brasileiros dos movimentos populares, como a Confederação do Equador. Se tivemos a Revolução Farroupilha, nortistas e nordestinos também tiveram a Cabanagem, no Pará; a Sabinada, na Bahia; a Balaiada, no Maranhão; e Palmares, em Pernambuco/Alagoas.

A política nefasta do Poder Branco (White Power ou WP), em 500 anos de dominação, loteou a África, promoveu e justificou a escravidão, destruiu culturas indígenas, perpetuou genocídios, envenenou o planeta, saqueou culturas e terras alheias, demonizou valores diferentes dos seus para fazerem o que se tem hoje por civilização. Gobineau quer mais, quer matar à luz do dia. Se for coisa dos maus, há solene conivência no silêncio dos bons.

Façanha negra gaúcha foi estruturar o Estado na terra dita de sobreviventes pelos extremos do clima. Outra foi Porongos, com farrapos emboscados para execução. No breu de favelas embarradas, igual senzalas, com lágrimas de sangue, meninas/mães embriagam bebês para não verem o pior da natureza. Poupam-lhes perceber convívio com ratos e baratas, com a fome que tira o sono, doenças, estupros que sofrem de policiais brancos e, quem sabe, morte. Não fora assim, não persistiria o racismo.

Façanha que se ensaiou na eleição municipal de 2020, em Porto Alegre, foi deixar de eleger criminosos, não sendo mais produtos à disposição branca em prateleiras, até para casamentos. Iludidos não consideram a falta de igualdade que não temos, e outros juram não ver o preconceito que sofrem.

Façanhudos gaúchos não dizem da queixa dos negros. Porém, prisões e manicômios são reservados aos indignados, tomados por doentes ou criminosos. Após exploração dos conhecimentos ou da força de trabalho, falseiam a espiritualidade negra dos terreiros assim como tornaram loiro o Cristo dos desertos. Façanhudos se dizem realizadores de créditos negros, estes, desvalorizados com a libertação, mal pagos para construírem palácios, abrirem valas, iluminar catedrais. No coma da inconsciência coletiva, vivenciam a beleza do paraíso traduzindo-o em artes.

O empoderamento rejeita a glamourização de favelas e faz a branquitude pobretã recrudescer o espicaçar racista ao perceber negros à frente, ameaçando-lhes a reserva de mercado. Revoltados, resistem ao genocídio da população negra. Racistas matam negros e encardidos em becos e vielas. Debaixo da desmoralização das forças regulares por facções milicianas ferve a degradação tomada por vida normal. Ao despertar, o negro desconfia de irmandades e amizades; aí, se fala de racismo reverso, para confundirem-se conceitos e ações.

O Adolfo despenteado sopra sanguinolências. Retintos capitães do mato e índios embriagados repetem que sofremos pela herança negra e indígena. Alienados cantam e dançam por julgarem-se a salvo da “solução final”. No nazismo, perguntavam: “Quem és tu, um cientista, um artista? Não! Tu és judeu”. Tal surpresa terão os condenados por uma única e disfarçada gota de sangue negro.

O Adolfo suicida alega ameaça comunista da China, já que não fabricamos nem papel higiênico com 30 milhões de desempregados. Representam os que perderão status pelo mal que se desenha. Contrariamente às classes que se pensam elite com base em cargos e sonegações, a elite frequenta o esgoto Brasil por satélites.

Em 400 anos de escravidão, ao mentalizar dignidade e vingança, ao alternar rezas e maldições, luz e sombra, loucura e sanidade, a coletividade negra invocou reação cósmica sem saber o que fazia. Física, emocional e mentalmente enfraquecida pela opressão, buliu luminosidade que incendeia em vez de orientar. Despertou forças que não se controlam, como Kundalini, ou o lado justiceiro de um coletivo de orixás. Abriu todos os chacras da terra a um só tempo ao confundir emoções de música de religião com batidas de diversão, para retomar a consciência de si mesma.

Ao discutir crescentemente uma realidade que lhe é própria e única, a negrada aponta para uma façanha a ser glorificada pelo bem de todos. Por essa razão, a política da Frente Negra Gaúcha (FNG) soma-se à façanha de despertar a coletividade em geral e a negra em particular para a arte de conciliar interesses antagônicos.

 *Articulista da Frente Negra Gaúcha