opinião

Artigo: Demagogos e tiranos

As possibilidades de golpe militar na democracia brasileira são escassas. Sem apoio de Washington, transforma-se em missão quase impossível

Numa semana cheia de lances espetaculares, a visita do conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, ao presidente Jair Bolsonaro foi o mais discreto e talvez o mais importante nestes tempos tumultuados.

O emissário do presidente Joe Biden trouxe na sua bagagem três grandes temas: a inegociável proteção do meio ambiente; a possibilidade de afastar a chinesa Huawei do leilão do sistema 5G do projeto de internet brasileiro e a defesa da democracia e das liberdades no Brasil, inclusive a realização de eleições presidenciais livres com alternância no poder. A contrapartida oferecida foi a possibilidade de o Brasil integrar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Isso aconteceu antes dos blindados passearem pela Esplanada dos Ministérios sem nenhuma razão aparente, além de tentar constranger os deputados, quando se preparavam para derrubar a possibilidade da adoção do voto em cédula no Brasil.

O encontro do norte-americano com o brasileiro, subitamente, se tornou dramático e inesperado. Bolsonaro achou conveniente afirmar que a eleição de Biden foi marcada por fraudes de todos os tipos. Ele disse que, no seu entender, Trump venceu o pleito.

As possibilidades de golpe militar na democracia brasileira são escassas. Sem apoio de Washington, transforma-se em missão quase impossível. O Brasil, como, certa vez, disse Ulysses Guimarães, não é uma Uganda qualquer. É uma economia forte, que acolhe investimentos pesados de diversos países, inclusive, norte-americanos.

Militares brasileiros e estadunidenses se encontram e confraternizam lá e cá em cursos de vários tipos. Os adidos militares nos Estados Unidos têm contato direto com fornecedores de equipamentos para Marinha, Exército e Aeronáutica. Romper esses laços significa enorme prejuízo para o governo brasileiro e, em especial, para as Forças Armadas. A informação passada por Bolsonaro aos norte-americanos significa que ele vai tentar fazer aqui o que Trump fez lá.

Bolsonaro está seguindo roteiro consagrado na formação de líderes populistas que se transformaram em ditadores. Mussolini, trajando camisa preta, apareceu perante o Rei Vitor Emanuel III, consciente do espetáculo, avançou sobre o piso de mármore do Palácio Quirinal, cumprimentou o monarca e disse: ‘Senhor, perdoe-me. Estou vindo do campo de batalha’.

Depois fez misérias na Itália, firmou uma aliança com a Alemanha e foi à guerra. Terminou seus dias pendurado de cabeça para baixo num posto de gasolina em Milão, ao lado de sua amante Clara Petacci, também de cabeça para baixo, mas com a saia cuidadosamente amarrada na altura do tornozelo. Seu caminho foi o conhecido: milícias constrangendo, batendo, matando, censurando e criando narrativa própria.
Hitler seguiu roteiro semelhante na Alemanha. Depois de passar nove meses preso — quando escreveu Minha Luta — por ter tentado derrubar o governo em 1923, conseguiu se recuperar. Após 10 anos, seu pequeno partido nacionalista conseguiu boa votação.

Diante da falta de acordo entre as forças dominantes, o presidente Hindenburg o convidou para assumir a chefia do governo. Os experientes políticos achavam, na época, que poderiam controlar o novo personagem. Ele, um perigoso populista, transformou-se em ditador sanguinário que matou milhões de judeus e lançou a Europa numa convulsão de 50 milhões de mortos. E Hitler foi eleito. Não houve golpe de Estado. Houve um golpe parlamentar. Os militares o seguiram até o final dramático. Seu suicídio, ao lado de Eva Braun, no bunker em Berlim, em 1945, encerrou a aventura do simples cabo do antigo exército alemão.

Hugo Chávez seguiu o mesmo roteiro. Tentou o golpe, perdeu e foi preso. Depois, com apoio de Rafael Caldera, foi eleito presidente da República, num país que se orgulhava de ser a democracia mais longeva da América do Sul, vigente desde 1958, com liberdade e alternância no poder. Ele era um oficial de baixa patente, nunca havia ocupado um cargo público. Chávez foi eleito por maioria. Depois, passo a passo, modificou a legislação para se reeleger e permanecer no poder até morrer. Seu sucessor, Nicolás Maduro, que não tem nada com o passado, governa como um ditador qualquer.

Conclusão da história: os três ditadores foram eleitos. Os poderes especiais que criaram as ditaduras foram conseguidos por meio de negociação e pressão sobre os respectivos parlamentos. Hamilton tinha previsto o fenômeno quando escreveu O Federalista: “Entre os homens que subverteram a liberdade das repúblicas, a maioria começou cortejando o povo, começam demagogos e terminam tiranos”. É a tentativa de Bolsonaro.

*André Gustavo Stumpf é jornalista (andregustavo10@terra.com.br)