A covid-19 não provocou a tragédia da educação brasileira. Ela apenas desnudou a realidade do atraso e da desigualdade na educação. Desde sempre, as avaliações colocam o Brasil entre os países com uma das piores e com a mais desigual educação de base no mundo, conforme a renda da criança. Apesar disso, a população brasileira, eleitores e eleitos, não parecia perceber a dimensão da tragédia nem estava atenta às terríveis consequências disso para o futuro das crianças e do país.
A baixa qualidade impede o aumento da produtividade para gerar renda nacional, e a desigualdade na educação é a principal causa da pobreza social e da concentração de renda e suas consequências. A epidemia da covid-19 não criou essa situação, apenas desnudou a realidade e explicitou os desafios que existiam.
A sociedade brasileira sempre tratou com descaso o fato de termos a oitava maior população de analfabetos entre todos os países, e termos apenas metade dos brasileiros terminando o ensino médio e, no máximo, metade deles em condições de alfabetização para o mundo contemporâneo: conhecer bem a língua portuguesa e falar pelo menos mais um idioma, saber matemática, as bases das ciências, história, geografia, problemas do mundo e dispor de um ofício para conseguir emprego e renda.
A pandemia permitiu descobrirmos a realidade: o Brasil tem escolas e fake escolas. As primeiras, embora ainda deficientes, foram capazes de se ajustar e mantiveram um mínimo de qualidade, as outras praticamente abandonaram as crianças por falta dos equipamentos necessários, de professores preparados e motivados e de governantes que dessem importância à educação. Além disso, a imensa maioria das famílias brasileiras não dispunha em casa dos equipamentos básicos para receber aulas transmitidas, no caso da escola que estivesse em condições de transmiti-las remotamente.
A covid-19 desnudou nosso despreparo para o uso das modernas técnicas de teleinformática aplicadas à educação. Há pelo menos duas décadas, o avanço técnico já tinha criado as condições para a execução das aulas remotas. O ensino a distância é uma realidade que o ensino superior vem praticando, mas que a educação de base nem ao menos considerava. Além de desnudar a desigualdade, a pandemia desnudou o atraso no equipamento de nossas escolas. Ao desnudar o atraso e a desigualdade, ela nos trouxe dois desafios: como equipar as escolas para aproveitar todas as vantagens da modernidade da teleinformática, dos bancos de dados e imagens, e como oferecer essas vantagens a todos, independentemente da renda e do endereço de cada criança.
A pandemia mostrou que a pedagogia está atravessando, 100 anos depois, o desafio que a arte dramática enfrentou na passagem do teatro para o cinema, devendo adaptar as aulas teatrais — professor, aluno, quadro negro — para as aulas cinematográficas —, em que o professor usa o seu conhecimento, os equipamentos e linguagens novas para ensinar presencial ou remotamente. O desafio está em formar professores e oferecer a eles o apoio técnico e os equipamentos necessários para o novo tipo de magistério que vai caracterizar os próximos anos.
Será uma estupidez nacional não aproveitar as novas técnicas. Será uma indecência se essa nova pedagogia continuar como privilégio de poucos. O desafio trazido pela covid-19, ao desnudar a realidade do atraso e da desigualdade, exigirá que o Brasil desperte para o atraso e a desigualdade: crie um Sistema Único Nacional de Educação de Base, capaz de oferecer em condições iguais o potencial das novas técnicas, aliadas às concepções humanistas da pedagogia.
A pedagogia precisa dar o salto que o cinema deu para universalizar a arte dramática, permitindo a qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, assistir aos melhores diretores e atores que eram privilégio dos ricos em cidades grandes. As novas técnicas digitais e de teleinformática permitirão atividade pedagógica de qualidade: mais agradável ao aluno, mais eficiente para o aprendizado e mais democrática ao se espalhar para todos.
No caso da passagem do teatro ao cinema, não houve necessidade de vítimas, nem mortos. No caso da educação, tanto demoramos para abrir os olhos que foi preciso a maldição da covid-19 para mostrar a nudez do atraso e da desigualdade. Pior será se percebermos a nudez, mas não enfrentarmos os desafios de modernizar e dar equidade à educação de base oferecida às crianças brasileiras.
* Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação