A luta pela desnaturalização da violência política contra a mulher obteve uma inédita conquista com a sanção do Projeto de Lei nº 5.613/2020. A partir de agora, o Brasil sai da lista dos países que não têm legislação específica para prevenir, reprimir e combater esse tipo de violência. Há de se celebrar que o tema tenha ganhado atenção legislativa e que seja fruto da contribuição de diferentes setores da sociedade, apresentando-se como um instrumento de melhoria da qualidade da nossa democracia. Por outro lado, existem pontos a serem aperfeiçoados e esclarecidos.
A lei brasileira passa a considerar violência política contra a mulher “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher”, além de “qualquer distinção ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo”. Essa definição é menos ampla do que a que tem sido aplicada em documentos internacionais, como a Lei Modelo Interamericana, a qual menciona expressamente, por exemplo, a possibilidade de a violência ser praticada direta ou indiretamente, além de dispor sobre as formas de manifestação: violência física, sexual, psicológica, moral, econômica ou simbólica.
Apesar da generalidade conceitual, várias omissões relevantes foram identificadas, como descrito na Nota Técnica(1) elaborada pelo Observatório de Violência Política Contra a Mulher(2). Um exemplo é a restrição da aplicação da lei ao âmbito eleitoral, que revela uma má percepção da multiplicidade de espaços em que as agressões podem ocorrer.
Compreender que a violência política atinge apenas candidatas e detentoras de mandatos significa deixar desprotegidas milhares de mulheres. Por isso, defende-se que os direitos políticos das mulheres, para fins de combate à violência, sejam considerados de modo amplo, não se restringindo àqueles diretamente relacionados aos espaços político-eleitorais. Assim, definir o que são direitos políticos para os fins de aplicação da norma é uma medida prioritária.
A violência política não ocorre apenas no período eleitoral. Na verdade, as agressões podem ser praticadas a qualquer tempo, em espaços públicos ou privados. Essa elucidação permitirá aprimorar o sistema de sanções a ser construído em complementação à lei. Combate-se uma cultura naturalizada de violência, de forma que os mecanismos que fomentem a mudança de comportamentos precisam ser estimulados, não sendo suficiente a aplicação de punições a ilícitos penais.
Soma-se ainda, no que se refere às sanções, a questão quanto ao espaço institucional em que deve ser feita a investigação: se no âmbito da Justiça Eleitoral ou das Comissões de Ética e Decoro Parlamentar das Casas Legislativas. Afinal, há registros recentes de que o colegiado político pode ser um ambiente de impunidade para casos de violência política de gênero, encontrando em arranjos políticos a não punição.
Preocupa que o atraso da inserção do tema no ordenamento jurídico brasileiro venha acompanhado de defasagens sobre a compreensão das formas, da multiplicidade de possíveis vítimas e agressores, dos espaços em que pode ocorrer e da relação com outras formas de violência praticadas contra as mulheres.
O assunto é muito mais profundo do que foi definido na lei, mas encontrou avanço na sanção presidencial. O não veto à matéria representa uma concordância do Poder Executivo com o Legislativo e o respeito à aprovação do projeto por unanimidade no Senado Federal. Esse se apresenta como um passo necessário para o reconhecimento e combate à violência política de gênero, e merece ser festejado. Ao mesmo tempo, ainda há muito a ser considerado, inclusive, no que se refere à aplicação efetiva da lei, a fim de criarmos um sistema forte de prevenção, combate e erradicação da violência política contra as mulheres no Brasil.
(1) COMISIÓN INTERAMERICANA DE MUJERES. Ley Modelo Interamericana Para Prevenir, Sancionar y Erradicar la Violencia contra las Mujeres en la Vida Política. Disponível em: https://www.oas.org/en/cim/docs/ViolenciaPolitica-LeyModelo-ES.pdf.
(2) OBSERVATÓRIO DE VIOLÊNCIA POLÍTICA CONTRA A MULHER. Nota Técnica sobre o PL 5.613/2020. Disponível em:https://transparenciaeleitoral.com.br/wp-content/uploads/2021/07/Nota-tecnica-Nova-Lei-VPM-2021.pdf
* Desirée Cavalcante e Noemi Araújo são ntegrantes do Observatório de Violência Política Contra a Mulher