HENRIQUE ANDRADE*
Em 17 de março de 2020, deixei um escritório no centro de Brasília para desenvolver minhas atividades empresariais em um escritório dentro de minha casa. O home office estava entrando em minha vida. Os primeiros meses foram de deslumbramento e encantamento. Afinal, eu podia desfrutar de um ambiente aprazível, confortável, ao lado da minha esposa. Mas, nos meses que seguiram comecei a sentir falta do relacionamento face to face com os profissionais da empresa, dos desafios diários que vivemos cotidianamente dentro de um ambiente no qual convivemos com várias pessoas de diversas crenças, formações e culturas.
Trabalho com colegas de várias gerações e sinto saudade das produtivas discussões acerca das diferentes visões e comportamentos, das formas também distintas de lidar com os clientes. Nossa atuação profissional não nos desafia apenas com as questões da nossa área. Somos seres coletivos, interativos, sociáveis e tudo ao redor nos coloca frente a frente com as questões do mundo.
Minha geração testemunhou a chegada do homem à Lua, vimos nascer o movimento de direitos humanos, a segunda onda do movimento feminista. Somos idealistas, revolucionários, coletivos, assim como os cientistas e as vacinas. Para a minha geração, primeiro vem o convívio, e depois o consumo. Somos high tech, but high touch.
Acreditamos ser o olho no olho que transmite segurança e comprometimento ao cliente. Então, não me encaixei muito bem nessa nova forma de trabalho, mas estou seguindo adiante, pois a única certeza que tenho é a incerteza. Tenho tentado me adaptar com ela e também com a fragilidade, com a incompreensibilidade que vivemos no século 21. Muitas das regras, costumes, leis e verdades que aprendi tomaram outra dimensão, se transformaram. Na verdade, muitas estão mesmo com validade vencida.
Manuel Bandeira que me perdoe, mas não existe mais Pasárgada. Não existe rei e ninguém está seguro. Assim sendo, precisamos construir uma cidade melhor, um país melhor, um mundo melhor. A Pasárgada de Bandeira é um sonho e nós transitamos na realidade. No nosso habitat, hoje, temos a pesquisa e a ciência como aliadas. Elas nos permitem um futuro, são nossa liberdade, nossa força para vencer os negativistas e os oportunistas.
Comecei a trabalhar com 17 anos, à noite. Era auxiliar na coordenação de um curso para vigias e trabalhadoras domésticas. Minha função era simples, mas encantadora para um jovem que vislumbrava dias melhores para os mais necessitados. Fui professor de alfabetização, auxiliava, também, nas tarefas administrativas e conviver com uma comunidade sedenta por um futuro melhor marcou a minha vida. O curso noturno pelo qual trabalhei, no Colégio São Luís de Recife, foi minha porta de entrada em comunidades carentes e vulneráveis. Os alunos/as eram muito interessados, ávidos por conhecimento. Isso me encantava e construí, no meu subconsciente, algo que voltou a eclodir em 2013, depois do falecimento da minha filha, Rafaela, e da minha netinha, Clara.
Rafa sempre me dizia que seu sonho era ajudar as pessoas mais vulneráveis e, por isso, estudaria muito para transformá-lo em realidade. Ela acreditava no poder do conhecimento, na importância da ciência e das pesquisas, e estudou muito! Debruçava-se sobre os livros e as suas noites não tinham fim. Rafaela fazia da ciência e das suas pesquisas uma obstinação para poder alcançar o seu sonho: reverter a vulnerabilidade nutricional dos mais necessitados.
Hoje, ao refletir sobre os avanços da ciência, sobre a grandiosidade dos pesquisadores que transformam suas noites de descanso em trabalho para salvar vidas, percebo o quanto tenho a agradecer a esses heróis e heroínas. São pessoas que pensam no próximo, que buscam construir um mundo melhor. Tenho certeza absoluta de que a história lhes reconhecerá. Acredito que, apesar das descrenças e incertezas que vivemos, o coração da nossa gente, do nosso povo, é grande e sábio. O brasileiro sabe que a vacina é um bem e um direito coletivo.
A certeza que tenho hoje é que estou rodeado de pessoas do bem. Vivo isso no Instituto Doando Vida por Rafa e Clara, instituição que eu, minha esposa, família e amigos fundamos depois da partida das nossas meninas. São amigos anjos e anjos amigos que veem com as mesmas lentes que vejo o mundo. Juntos temos conseguido transformar a vida dos mais vulneráveis.
A pandemia permitiu-me focar ainda mais na ajuda aos mais necessitados. O Instituto se tornou um catalisador do bem. Transformamos nossos dias, noites e finais de semana em momentos de planejamento e definição de estratégias transformadoras. De 2020 pra cá, auxiliamos mais de 800 famílias, aproximadamente 4 mil pessoas. Canalizamos apoio de amigos das mais diversas regiões do país em prol das pessoas que vivem em situação de extrema vulnerabilidade, na Chácara Santa Luzia - região de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e maior Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) do Distrito Federal.
Perdi amigos/as, vítimas do novo coronavírus e da insensatez humana. Sou grato a Deus e à ciência pela vida, por permitirem que eu continue a ajudar quem mais precisa. Fazer o bem faz bem. Que Deus abençoe os cientistas, as pessoas que nos ajudam a ajudar e, que Ele dê paz a minha filha Rafaela e a minha netinha Clarinha, que me inspiram e me fortalecem para seguir nessa missão.
*Cientista, empreendedor e solidário