Artigo

O isolacionismo de 1930 e a queda de Cabul em 2021

É evidente que, em decorrência do papel que os Estados Unidos assumiram desde meados da década de 1940, Trump jamais conseguiria implementar um "isolacionismo" como o que era cobrado a Woodrow Wilson no amanhecer do século 20

João Carlos Souto*
postado em 22/08/2021 07:00 / atualizado em 22/08/2021 10:48
 (crédito: Ahmad SAHEL ARMAN / AFP)
(crédito: Ahmad SAHEL ARMAN / AFP)

Em 1934, foi publicado nos Estados Unidos o livro Merchants of Death (Mercadores da Morte), escrito a quatro mãos por dois talentosos autores: o jornalista Frank Cleary Hanighen e o escritor Helmuth Carol Engelbrecht, ambos norte-americanos. Os autores denunciam que as guerras são instrumentos de lucro para um grupo restrito de pessoas, os tais “mercadores da morte”. Ao contrário do que apressadamente se possa imaginar, Hanighen e Engelbrecht nunca foram militantes contra a elite, eram conservadores e escreveram por convicção.

A obra é um clássico e retrata uma época em que o país se encontrava dividido entre o envolvimento em questões internacionais e a prioridade dos assuntos domésticos, tema que ocupou largo espaço de tempo da administração do presidente Woodrow Wilson, que resistiu o quanto pode em participar da Primeira Guerra Mundial, sucumbindo em 1917, após pressão de Theodore Roosevelt, entre outros. O ingresso no conflito teve um preço, parte expressiva da sociedade estadunidense se sente traída com a quebra da neutralidade e cresce o clamor para que o país se “isole” dos conflitos europeus.

Nesse período (término da Guerra e início dos anos 1930) surge nos meios acadêmicos dos Estados Unidos (EUA) a expressão “isolacionismo”, para caracterizar a corrente política que prega distância de conflitos externos e prioridade para os assuntos domésticos. Certamente esse ambiente influenciou a publicação de Merchants of Death.

A doutrina permaneceu no imaginário norte-americano, embora diminuída com as novas responsabilidades advindas da posição de incontestável liderança que o país conquistou a partir do término da Segunda Guerra Mundial e a guerra fria que seguiu, vale dizer, a disputa pela influência global entre os Estados Unidos e a extinta União Soviética.

No discurso de posse, em 20 de janeiro de 2017, Donald Trump recupera o termo e lhe empresta nova roupagem: “America First”. É evidente que, em decorrência do papel que os Estados Unidos assumiram desde meados da década de 1940, Trump jamais conseguiria implementar um “isolacionismo” como o que era cobrado a Woodrow Wilson no amanhecer do século 20. Mas, ainda assim, ele buscou praticá-lo, a exemplo das ameaças de deixar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), da fixação em cortar custos com a presença militar externa na Coreia do Sul, na Alemanha e no Japão ou, ainda, quando flertou, em Milwaukee (Wisconsin), num programa de tevê transmitido nacionalmente, com a possibilidade de o Japão e a Arábia Saudita terem arsenais nucleares.

É evidente que essas manifestações nem sempre se caracterizaram como uma política de governo, não raro se tratavam de simples arroubos eleitoreiros. Mas revelam a necessidade de agradar parte do eleitorado, que pensa assim, vale dizer, que os EUA deveriam se afastar de suas “obrigações” internacionais.

A doutrina Trump, o America First, conduziu a que os EUA se retirassem da Siria, em outubro de 2019, para deleite do presidente turco Recep Erdogan. E conduziu à negociação direta com o Talibã para a retirada do Afeganistão, agendada por ele para maio de 2021. Joseph Biden toma posse e, num ato contestado por alguns de seus auxiliares, prossegue com o plano de deixar o Afeganistão, embora adiando de maio para setembro de 2021.

Em 15 de agosto de 2021, o mundo assistiu entre incrédulo e preocupado a retomada do Afeganistão pelo Talibã. O caos na capital afegã fez com que muitos evocassem Saigon de 1975, se esquecendo que os EUA invadiram o Afeganistão em 2001 como resposta ao 11 de setembro, com apoio político da Organização das Nações Unidas (ONU) e bélico da Otan. O objetivo era desbaratar a Al-Qaeda e evitar que outro atentado como o perpetrado contra as Torres Gêmeas e ao Pentágono se repetisse. Vinte anos depois é possível dizer que a missão, até aqui, foi cumprida e com sucesso. Por outro lado, a saída de Cabul foi um desastre do ponto de vista estratégico e de organização. A história dirá se abrir mão da presença no Afeganistão foi uma medida acertada. De qualquer modo a América de Woodrow Wilson, anterior a 1917, estava presente em Cabul de 2021.

*João Carlos Souto é professor de Direito Constitucional, Procurador da Fazenda Nacional e autor de Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais Decisões 

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