opinião

Artigo: A tecnologia não pode aprofundar as desigualdades. Nem no direito

Embora a utilização da tecnologia seja uma realidade, esse processo não pode ser acrítico e nem tem sido absorvido por toda a advocacia de forma homogênea

Thais Riedel de Resende Zuba*
postado em 19/08/2021 06:00 / atualizado em 19/08/2021 07:57
 (crédito: Antonio Cunha/CB/D.A Press)
(crédito: Antonio Cunha/CB/D.A Press)

A tecnologia ocupa lugar central em todas as profissões e não é diferente no mundo do direito. Desde a possibilidade legal do processo eletrônico, em 2006, avançamos muito. Hoje, é comum escritórios de advocacia utilizarem ferramentas tecnológicas baseadas em algoritmos para automatizar a rotina do escritório e auxiliar advogados na busca de jurisprudência e outras atividades. Vários Tribunais se valem da tecnologia para dar celeridade e eficiência aos processos judiciais.

Embora a utilização da tecnologia seja uma realidade, esse processo não pode ser acrítico e nem tem sido absorvido por toda a advocacia de forma homogênea. É preciso acompanhar de perto a utilização desses instrumentos para que não sirvam de reforço às fragilidades conhecidas pelo sistema jurídico brasileiro e para que nenhum limite ético seja transposto. Mais importante ainda: é preciso que essas tecnologias não se prestem a reforçar a desigualdade de condições de trabalho entre os advogados.

Já existem nos sistemas jurídicos internacionais ferramentas que utilizam algoritmos que ficam mais inteligentes na medida em que são alimentados e, assim, ajudam a compor dosimetria de pena, por exemplo. Mas nenhuma máquina é capaz de avaliar a situação específica, cujas subjetividades os algoritmos não são capazes de perceber.

No Brasil, alguns tribunais utilizam essas ferramentas para conversão de imagens, separação e classificação de peças processuais, análise de recursos e a existência de demanda repetitiva sobre o assunto, e há até alguns tribunais que se valem de ferramentas que auxiliam na construção de decisão, com sugestão de frases. Embora tais ferramentas sejam úteis na busca do princípio da celeridade, elas precisam conviver com outro princípio, o do contraditório e da ampla defesa.

Ocorre que essas ferramentas constroem soluções com base nos dados que são inseridos. Já se comprovou que alguns programas confirmam vieses preconceituosos e têm dificuldade em abranger diferenças raciais, entre outros exemplos que apontam a necessidade de uma base muito ampla de dados primários para poder gerar resultados eficientes. Portanto, embora as máquinas avancem, não substituem a necessidade de humanização dos processos. O processo eletrônico é uma realidade e diversos instrumentos da Justiça facilitam a atuação do advogado, como o Sibajud, o Infoseg, o Renajud e o Infojud.

Nos escritórios, há desde ferramentas que acompanham os andamentos processuais, alertando o advogado sobre prazos, a programas que fazem notificações extrajudiciais e as expedem. Outras, ainda, apontam a probabilidade de sucesso de uma causa, a jurisprudência predominante em casos semelhantes aos analisados e promovem resolução de conflitos por mediação, arbitragem e negociação de acordos. É o que chamamos de Advocacia 4.0.

Ocorre que tudo isso tem um custo elevado, disponível apenas para grandes escritórios. É indispensável que se criem alternativas para que os advogados recém-formados e aqueles que atuam em condições menos favoráveis possam ter acesso a ferramentas que melhorem seu desempenho profissional. Por outro lado, há um número expressivo de profissionais do Direito formados antes dessas ferramentas estarem disponíveis. É preciso incluir e qualificar digitalmente esses profissionais, para que possam seguir prestando serviços advocatícios de qualidade e exercendo dignamente a profissão.

Esse rol, apenas exemplificativo, de questões que envolvem Direito e Tecnologia exige que a Ordem dos Advogados do Brasil tenha uma atuação efetiva, articulada com todos os estados da federação e coordenada no acompanhamento do tema. A capacitação para essa nova advocacia deve ser uma prioridade da OAB. É preciso garantir que todos os advogados consigam exercer de maneira plena a advocacia com as ferramentas públicas já disponíveis. A Escola Superior da Advocacia do Conselho Federal, mas, especialmente, a das seccionais, deve oferecer cursos, palestras e outros investimentos concretos sobre esse assunto. A parceria com universidades, centros de formação e pesquisa deve ser fomentada em todas as seccionais.

Além do mais, cabe à Ordem oferecer estrutura física para que os advogados possam exercer essa advocacia que é realidade, nas suas sedes. A Ordem precisa ser uma voz ativa na busca pela uniformização dos sistemas eletrônicos existentes atualmente. A autonomia da Justiça e suas instâncias devem ser respeitadas, mas não é aceitável que haja uma disparidade de qualidade de sistemas que inviabilize o exercício profissional. O advogado que não consegue acessar um sistema de determinado Tribunal precisa encontrar na OAB condições e orientação de como fazê-lo.

A Ordem deve incentivar uma concertação institucional, para que a adoção de ferramentas tecnológicas não fira preceitos éticos e seja instrumento de aprimoramento do sistema jurídico hoje vigente, e não de aprofundamento de desigualdades nas condições do exercício profissional. A tecnologia precisa estar a serviço do direito, não da desigualdade.

*Thais Riedel de Resende Zuba é mestre em direito previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutoranda em direito constitucional pelo IDP. É presidente do Instituto Brasiliense de Direito Previdenciário (Ibdprev) e da Associação Confederativa Brasileira da Advocacia Previdenciária (Acbrap)

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