Desde 1960

Visto, lido e ouvido — Tribunais da história

Dizia o saudoso professor e historiador, autor de diversos livros sobre a matéria, Dicamor de Moraes, que, em história, não há , como muitos creem, a possibilidade de julgamentos e outros processos capazes de recompor o que foi feito. E a razão é simples: trata-se de fatos ocorridos numa dobra distante do tempo, inacessível aos homens, a seus critérios de análise sempre de acordo com as mudanças do presente. “Mudam-se os tempos, mudam-se os desejos”, ensinava Camões no século 16.

Trata-se, aqui de uma questão que, por sua abrangência, tem sido alvo constante de polêmicas e conflitos de toda a ordem. É o caso daquele indivíduo adulto que, por questões íntimas, não consegue estabelecer um acordo de paz com seu passado e, portanto, se vê em constante conflito interno, incapaz de entender e aceitar que essas amarras, que o prendem à memória, impossibilitam o desenrolar do seu próprio presente.
Essa reinterpretação da história, com base em análises e estudos fornecidos por descobertas recentes e outros documentos — que alguns reconhecem como sendo uma nova disciplina intitulada e inserida nos meios acadêmicos —, é denominada, pelos entendidos no assunto, de “revisionismo histórico”.

Livros e uma infinidade de teses foram escritas sobre o assunto, na maioria das vezes, tendo como pano de fundo a situação política e ideológica do momento, bem como a evolução contínua dos costumes e práticas sociais hodiernas. Por certo, o ciclo perverso da escravidão, entre os séculos 16 e 19, por seus métodos cruéis , contrários aos mais básicos princípios da ética e da integridade humana, teve, em países como o Brasil e os Estados Unidos, por longos períodos, seus principais palcos de atuação. Esse fato, para o bem ou para o mal, moldaria o caráter histórico e formativo dessas nações, com reflexos diretos e duradouros na sua organização política, econômica e social.

As reparações históricas dos danos às populações negras, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, onde essa questão parece um pouco mais evoluída do que em nosso país, acontecem num ritmo que desagrada os explorados, uma vez que parecem não surtir os efeitos práticos desejados.

Toda e qualquer pesquisa que analise os dados relativos a Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) demonstra que, aqui e nos EUA, as populações negras são as mais desfavorecidas e as mais mal situadas na pirâmide social. E existe uma raiz histórica para esse fato e que remonta ao ciclo da escravidão.

As chamadas ações afirmativas, que alguns estudiosos indicam como sendo o início de uma reparação histórica, ao estabelecer um programa de cotas raciais nas universidades públicas, buscam o estabelecimento de uma igualdade de oportunidades a uma parcela da população que, historicamente, foi alijada dos mais básicos direitos de cidadania, e não um julgamento tardio e inócuo do período da escravidão.

Julgar a escravidão pelo retrovisor da história, com a depredação de monumentos e a condenação de personagens do passado, como é o caso recente da queima da estátua de Borba Gato, em São Paulo, por grupos radicais que desprezam temas dessa natureza, nada acrescenta ao fato de que no período do Brasil colônia e, posteriormente, os escravos eram as mãos e os pés dos senhores do engenho, responsáveis por erguer, pela ação do trabalho forçado, um país que nascia, como bem afirmou Antonil em Cultura e Opulência do Brasil.

Julgar e condenar esse fato, com base no presente, por meio de ações niilistas e sob o manto falso da iconoclastia, no máximo, deixará atrás de si escombros e cinzas, distantes do que poderiam ser ações concretas, visando a integração real dessas populações, historicamente, marginalizadas.
O fato é que nem aos vândalos nem a ninguém é dado o poder de mudar o passado. São com mudanças, civilizadamente pensadas, no presente, que poderemos vislumbrar alguma melhora no futuro, para que fatos, como a exploração do homem pelo homem, não volte a se repetir, sob quaisquer pretextos.