As discussões sobre saúde mental estão se tornando cada vez mais presentes e necessárias. A premissa de que “não há saúde sem saúde mental”, que simbolizou o alerta global para a necessidade de ações em relação às consequências dos transtornos mentais, tem um significado ainda mais particular nas primeiras décadas de vida – fase em que se manifestam pela primeira vez diversas dessas condições.
Transtornos mentais em idades precoces são associados ao uso de substâncias, evasão escolar, limitações econômicas, problemas de saúde física e também suicídio. Por esse motivo, a saúde mental não pode ser dissociada de outros problemas de saúde, nem de agendas sociais, como a educação e a empregabilidade.
É muito comum que o assunto seja abordado como dificuldades para lidar com emoções e sentimentos. No entanto, sem atenção e políticas intersetoriais consistentes, os impactos podem também se estender para as famílias, comunidades, sistemas de saúde, educacionais, de assistência e até mesmo para o país.
É de extrema importância refletirmos sobre as impermanências do campo da saúde mental na realidade brasileira. Ainda nos anos 1970, o Brasil se tornou referência internacional pela Reforma Psiquiátrica, que trouxe mudanças devido às denúncias de abuso em hospitais psiquiátricos. Esse processo se intensificou em 2001, por meio de garantias legais efetivas e o redirecionamento de recursos hospitalares para assistência básica de saúde mental.
A aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica (nº 10.216, de 2001), redirecionou os recursos para a expansão da rede de serviços comunitários, com aumento da oferta de cuidados em saúde mental. Outro passo importante, a criação das Redes de Atenção Psicossocial (Raps) — que oferecem serviços integrados para pessoas com sofrimento mental ou problemas decorrentes do uso de substâncias — junto aos Centros de Atenção Psicossociais (Caps) — se tornaram referências de acolhimento para os usuários.
No entanto, o levantamento Caminhos em Saúde Mental, que realizamos ao longo de 2020, revelou uma mudança de prioridades. Desde o final de 2015 e início de 2016, observam-se inconsistências na abordagem comunitária que avançava de forma tão promissora. Novas portarias do Ministério da Saúde criaram Unidades Ambulatoriais Especializadas, que permitiram a internação de crianças, adolescentes e incluíram hospitais psiquiátricos nos RAPS, diminuindo o orçamento da atenção básica.
Apesar dos avanços, o Brasil tem um cenário em que as políticas públicas de saúde mental não são implementadas de forma regular, na qual é difícil observar reais progressos. Em meio a tantos desafios, algumas prioridades precisam de mais atenção, não apenas do governo, mas da academia, de sociedade civil e de outros setores. Entre elas, a integração dos cuidados de saúde mental às estratégias de saúde geral, como ocorre nas campanhas de atenção pré-natal, de vacinação e de saúde nas escolas.
As dicotomias do passado — que impediram a efetivação de uma política de saúde mental, ao mesmo tempo científica e humana — precisam ser lembradas para que os equívocos não se repitam ou piorem na realidade pós-pandemia. Nessa encruzilhada, a promoção e a proteção da saúde mental devem estar em primeiro plano. Para isso, é imprescindível refletirmos na narrativa da saúde mental a mesma centralidade que ela já ocupa na nossa sociedade, nos nossos lares, corporações e vidas pessoais. Precisamos falar abertamente sobre isso, de forma mais articulada e menos polarizada.
* Maria Fernanda Quartieiro é Diretora presidente do Instituto Cactus
* Luciana Barrancos é Gerente executiva do Instituto Cactus