Por ANIE RAMPON BARRETTO — Delegada, assessora institucional da Delegacia-Geral da Polícia Civil e diretora parlamentar do Sindicato dos Delegados do DF
Se você é usuário de redes sociais, já se deparou com essa frase repetida, ou melhor, “repostada” algumas boas vezes desde quando Pamella Holanda divulgou os vídeos com a agressão do ex, DJ Ivis. As cenas são realmente repugnantes e desencadearam mais uma campanha, em que todo mundo se engaja e repete frases feitas sem parar um minuto para pensar com profundidade no assunto e se perguntar: qual a minha participação e responsabilidade nisso? E, indo um pouquinho além, o que eu posso fazer pra mudar isso?
Eu reflito muito sobre o assunto — até por dever de ofício — e sinto muito em ter que dizer isso, mas, enquanto continuarmos “salvando a mulher”, as mulheres vão continuar apanhando e morrendo! Não temos que salvar as mulheres. O que precisamos é garantir a mesma dignidade e o mesmo valor às mulheres em todos os aspectos da vida. Nós, mulheres, somos diferentes, sim, mas não somos menores, nem frágeis, nem incapazes, que precisam ser tuteladas e salvas a todo momento.
Não me entendam mal, é claro que, numa situação de violência, a mulher ou a criança ou o homem, ou quem quer que seja que esteja sofrendo a agressão (física, moral, psicológica, financeira, sexual etc) precisa ser salvo, socorrido, ajudado. Mas a questão aqui é: precisamos agir antes. Vamos construir uma sociedade em que a mulher tenha tantas oportunidades, tanto respeito, tanta dignidade, tanta liberdade… Em que ela não seja vítima de discriminação, assédio, abuso, violência… Em que ela não precise ser salva!
A violência doméstica é só a ponta do iceberg. É manifestação de um problema estrutural, assim como os salários mais baixos para mulheres, a sobrecarga de tarefas, os índices assustadores de estupros… Manifestações variadas da mesma violência, que, algumas vezes, é muito velada, outras é filmada e exposta nas redes. Por isso, em alguns casos choca, enquanto, em outros, até passa despercebida. A sociedade ainda dá menos dignidade à mulher. E isso acontece na nossa vida também. Na minha e na sua! É só parar para prestar atenção. Como li em algum lugar, “a mulher que diz que nunca foi discriminada é porque estava muito distraída”. Pura verdade.
Já que é para usar frases de efeito, vamos logo a Gandhi: “Seja você a mudança que deseja ver no mundo”. Não adianta repetir bordões, se continuarmos repetindo padrões! Como quase tudo na vida, para mudar algo do lado de fora, temos antes que mudar algo do lado de dentro. E essa mudança interna não é só do outro. Aí é que está o pulo do gato. A mudança é de todos! Nós repetimos padrões opressores dentro das nossas casas, em nossas opiniões, nas piadas maldosas, nos prejulgamentos, nos preconceitos, nas expectativas que criamos, nos comportamentos que incentivamos, no olhar desconfiado para a mulher que não vive conforme o papel social que se espera dela, na condescendência com condutas machistas, para “não ser a chata que bate de frente o tempo todo”.
São opressões que se sobrepõem e que validam umas às outras, como quando a mulher não ascende a cargos de liderança, porque se presume que não conseguiria a mesma dedicação ao trabalho que seus pares homens. Ao mesmo tempo em que se pressupõe que uma mulher que conta com a “ajuda” do parceiro para as atividades domésticas e de cuidado com os filhos tirou a sorte grande. E essa mesma mulher assume mais funções domésticas, porque, afinal, não se pode arriscar o trabalho do homem, que é “mais valioso”, já que, literalmente, paga mais. E desse jeitinho vamos reproduzindo, quase sem querer ou sem perceber, o pano de fundo para que a violência contra a mulher siga instalada nas casas, nas instituições e nas mentes. Eu não sei quanto a vocês, mas eu, uma “mulher padrão”, profissional bem-sucedida, casada, mãe de duas meninas, confesso que, muitas vezes, me sinto perdida nessa encruzilhada, ou melhor, presa nesse beco sem saída.
Voltando ao vídeo, como delegada de Polícia, que atuou um bom tempo na temática, posso dizer que esse é o dia a dia, o feijão com arroz, o trivial num balcão de delegacia. É claro que ver as cenas é sempre mais chocante que ouvir os relatos, até para mim. Por isso, entendo a comoção e acho válida a campanha. Mas enquanto houver mulheres precisando ser salvas, eu continuarei repetindo essa cantilena.