Homenagem

Pilar da diplomacia

Duas vezes, Paulo construiu para si mesmo um perfeito edifício político e o viu desmoronar. Em outro momento, tinha sido sua saúde que o desapontara. Enfrentou tudo e superou tudo. Até agora

À memória de Paulo Tarso Flecha de Lima

Não é fácil, e talvez seja mesmo impossível, resumir uma amizade que se estendeu durante 60 anos. Para os moços, prazos assim tão longos são os que definem ciclos da história, e não imaginam que possam se aplicar algum dia a eles ou a simples relações entre dois colegas e amigos.

Paulo Tarso e eu fomos próximos, contemporâneos na vida e no Itamaraty. Como é da natureza do que era então nosso ofício, havia tempos de aproximações e separações, mas os nossos caminhos eram quase sempre paralelos e, várias vezes, foram convergentes. Em 1987, ele me sucedeu na presidência da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag).

Em 1990, fui seu sucessor como secretário-geral das Relações Exteriores. Compartilhávamos, em linhas gerais, e sobre isso tínhamos longas conversas, a mesma visão de qual deveria ser o papel do Brasil no mundo. Compartilhávamos, também, um amor desmesurado pelos biscoitos de polvilho.

Os obituários já informaram qual foi a formação acadêmica de Paulo Tarso, e como eram profundas suas raízes mineiras. Falam também de seu percurso e dos postos que ocupou. Fico, assim, dispensado de fazer um relato rigoroso e sequencial de seu trajeto e falarei dele aqui como se as coisas tivessem acontecido sempre com perfeita naturalidade, tão íntima e profunda era sua associação com o Itamaraty, que via como sua casa, como sua profissão e como seu destino.

É nos tempos felizes do governo de Juscelino Kubitschek que, na assessoria próxima do presidente, dois Paulos deixam a sua marca: um, Flecha de Lima, e o outro, Nogueira Batista, de quem faço aqui também um registro saudoso. Tivesse JK voltado ao poder, como teria quase certamente acontecido não fosse a mudança então das regras do nosso jogo político, e a trajetória de Paulo, desde o começo tão promissora, teria sido, imagino, inteiramente outra.

Passados alguns anos, ele vai procurar e encontrar um nicho próprio na estrutura da política exterior brasileira. Paulo virtualmente inventou a nossa política de promoção comercial, como processo contínuo e estruturado, e não mais, como era antes, um exercício de montagem de feiras e exposições ou a procura tópica de soluções para questões comerciais que afetassem nossos interesses.

Sua obra perdura e hoje está de tal maneira incorporada ao tecido de nossa diplomacia que parece como se ali estivesse estado sempre. Em algum momento, se fará o reconhecimento justo e generoso do que foi a contribuição de Paulo para que o Brasil tivesse uma presença muito mais atuante no comércio mundial. Existem vozes mais qualificadas do que a minha para fazer isso, e lamento que, quando ocorrer, ele já não estará entre nós.

Quero recuperar, contudo, um momento preciso. Viajamos juntos mais de uma vez ao Iraque, onde o Brasil fazia uma audaciosa aposta. Paulo era um negociador vigoroso e os iraquianos, interlocutores difíceis e obstinados.Todo nosso investimento acabou com não pouca acrimônia naquela parte do mundo tão instável, e Paulo viveu então uma de suas finest hours ao conseguir resgatar centenas de operários e técnicos brasileiros, que as controvérsias da época haviam transformado virtualmente em reféns. Não aceitou nenhuma das soluções parciais que lhe eram oferecidas e ficou em Bagdá até que o último dos nossos fosse liberado. Contou para isso com a presença corajosa da Lúcia, que viajou para ficar a seu lado num episódio que um dia nosso cinema ou televisão saberão aproveitar.

Não resisto evocar um segundo momento. Era aniversário de Paulo, e Lúcia reuniu, em Washington, os muitos poderosos daqueles anos em que os Estados Unidos exerciam sem desafios o poder hegemônico no mundo. Entre os convidados, estava Plácido Domingo, e tive então meus únicos segundos de glória operática: cantamos juntos os “parabéns pra você”.

Em três grandes embaixadas que chefiaram, Paulo e Lúcia deixaram a mais radiosa presença. Ele havia começado, jovem, seu caminho em Roma naquele mesmo palácio extraordinário que Hugo Gouthier conseguiu para nós. Voltou e recuperou aqueles maravilhosos espaços degradados pelo uso e pelo tempo. Também em Washington e em Londres, Lúcia e ele, como sempre, associavam estilo e conteúdo e faziam com que a diplomacia parecesse, como acontece em seus melhores momentos, uma mistura de arte e ciência e um dos ofícios mais sedutores da vida civilizada.

Comecei estas lembranças no tempo de JK e termino quando parecia que Tancredo Neves nos governaria e que Paulo seria um dos seus principais, senão o principal colaborador. Novamente, aqui, o destino impediu que o que pareciam ser, como nos tempos da volta de JK, favas contadas, afinal não acontecesse. Pude assistir, então, a vários momentos que mostravam como havia bom entendimento e sintonia fina entre aqueles dois eminentes mineiros.

Duas vezes, Paulo construiu para si mesmo um perfeito edifício político e o viu desmoronar. Em outro momento, tinha sido sua saúde que o desapontara. Enfrentou tudo e superou tudo. Até agora. Sua morte, contam-me amigos queridos, permitiu que o nosso novo ministro das Relações Exteriores trouxesse o Itamaraty de volta a suas melhores práticas ao permitir uma homenagem discreta, mas eloquente, naqueles salões ao grande profissional que partia. Fico seu devedor por esse gesto que devolve o Itamaraty ao seu melhor comportamento.

Fica faltando aqui uma palavra minha final. À memória de Lúcia, queridíssima amiga, e à lembrança de Paulinho. Para Isabel, João Pedro, Bia e Tota, a certeza de que sempre poderão contar comigo. Com Paulo não ficou faltando falar nada. Afinal de contas, 60 anos é tempo bastante para cimentar uma amizade e para dizer o que importava.