Por KELLY QUIRINO — Doutora em Comunicação pela UnB; estudou o genocídio da juventude negra no Brasil e nos EUA com base na análise do jornalismo impresso
O ex-policial Derek Chauvin foi sentenciado a 22 anos e meio de prisão pela morte de George Floyd. Em maio, Chauvin já havia sido condenado após julgamento histórico, pois, pela primeira vez na história dos Estados Unidos, um policial foi condenado por assassinar uma pessoa negra.
O caso George Floyd ficou mundialmente conhecido. O assassinato à luz do dia, em via pública, aconteceu na cidade de Minneapolis, estado de Minnesota, em 25 de maio de 2020. Aos 46 anos, Floyd foi estrangulado pelo policial branco Derek Chauvin por supostamente usar uma nota falsificada de vinte dólares em um supermercado. Por oito minutos e quarenta e seis segundos, o policial apoiou o joelho no pescoço de Floyd, ainda que estivesse imobilizado, desarmado, algemado e no chão.
A violência desproporcional continuou, ainda que pessoas estivessem filmando com os celulares a abordagem policial, pedindo para ele parar e o próprio Floyd repetindo diversas vezes: “Eu não consigo respirar”. Floyd morreu e a sua morte gerou vários protestos nos Estados Unidos e no mundo. Gianna Floyd, filha de apenas seis anos na época da morte do pai, ao ver as manifestações do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) disse: “Papai mudou o mundo”.
Sim, mudou. Só nos últimos 10 anos, os assassinos de Trayvon Martin, Eric Garner e Michael Brown foram absolvidos. Os responsáveis pelas mortes desses homens negros eram brancos e policiais. É dentro deste contexto que o caso Floyd se insere: mortes sistemáticas de pessoas negras por policiais brancos. E a condenação de Derek Chauvin é uma conquista simbólica e política, que é resultado de um movimento, o Black Lives Matter, que nasceu em 2013 e é o maior, depois da luta pelos direitos civis no século passado.
Agora, em que medida a condenação de Derek Chauvin impacta no Judiciário brasileiro? Ainda é cedo para afirmar se o sistema Judiciário brasileiro mudará a partir do caso Floyd. Estados Unidos e Brasil são dois países com um passado colonial, estruturado sobre o racismo e no qual a vida de uma pessoa negra não tem o mesmo valor de uma pessoa branca.
Mas o Brasil ainda tem especificidades em relação aos Estados Unidos, porque mata sistematicamente pessoas negras e aos milhares. Em 2020, só no Brasil, tivemos o caso do menino João Pedro e das primas Emilly Vitória e Rebeca Beatriz assassinados por “balas perdidas”, e, até o momento, não se sabe de onde os tiros partiram e muito menos quem são os assassinos.
Segundo o Atlas da Violência 2020, quase 58 mil pessoas foram assassinadas, em 2018, e 75,7% das vítimas eram negras. O estudo constata que uma pessoa negra tem a probabilidade de morrer de forma violenta 2,7 vezes mais do que uma pessoa branca. Desde o final dos anos 1970, o professor Júlio Waiselfisz apontava uma maior vulnerabilidade de pessoas negras morrerem de forma violenta no Brasil. É a necropolítica a presidir quem deve viver e quem deve morrer e de que forma é esta morte, como bem constatou o filósofo camaronês Achille Mbembe.
Além da dor da perda dessas vidas, as famílias ainda vivem com a realidade da impunidade. Dados do Instituto Sou da Paz apontam que apenas 30% dos casos de homicídio são esclarecidos no Brasil. Dos 750 mil presos no sistema penal, apenas 10% cumprem pena por homicídio. A maior parte das pessoas presas são por tráfico de drogas e crimes contra o patrimônio. E a população carcerária brasileira tem cor. Cerca de 63,7% dos encarcerados são formados por negros, segundo dados de 2017 do Departamento Penitenciário Nacional. Mais uma consequência da necropolítica do Estado brasileiro.
Diante desta necropolítica, é difícil vislumbrar que o sistema judiciário brasileiro passe a investigar os homicídios no Brasil e punir os responsáveis. Ainda que a condenação de Derek Chauvin seja simbólica, o povo negro brasileiro está sendo estrangulado, intercedendo ao Estado — “Eu não consigo respirar”. E morrendo, como Floyd.
Mas há esperança. O Movimento Negro no Brasil é o principal ator social que denuncia estas mazelas, que se organiza e saí às ruas gritando — Vidas Negras Importam — assim como o Black Lives Matter nos Estados Unidos. O movimento também faz agendamento desta pauta nos meios de comunicação, nas redes sociais, reivindica políticas públicas antirracistas e mantém a memória de pessoas negras assassinadas. E, por mais que possa parecer distante que no Brasil outros Derek Chauvin sejam condenados, por causa da atuação do Movimento Negro, este dia há de chegar aqui também.