OPINIÃO

Artigo: Música de tempos sombrios

A covid-19, que ceifa vidas, fragiliza a saúde e impõe distanciamento entre as pessoas, impedindo a presencial troca de afeto, não deveria ser uma fonte de inspiração para os compositores. Pelo menos teoricamente. Mas, na prática, não é o que tem ocorrido. Durante a interminável quarentena, impressiona a quantidade de músicas, dos mais diversos gêneros, que vêm sendo criadas. Algumas falam do vírus em si; outras trazem nas letras reflexões sobre o que a pandemia suscita. Mas há as que fazem analogia com outros fatos do dia a dia, igualmente maléficos, ou como — por conta do uso da vacina — veem no horizonte algo de bom, depois que tudo isso passar.

Em Salve o mundo, Talokudo, humorista, influencer digital e fenômeno na internet escreveu: “Se alguém espirrar/ Todo mundo sai correndo/ É melhor ficar de quarentena/Mas quem tem que trabalhar reforce a prevenção/ Se ligue aí nessas dicas meu irmão”. O lirismo se esparrama na letra de Saudade, música de Alceu Valença, destaque da cultura nordestina, que fala do distanciamento social. Um dos versos diz: “Saudade de amigos, como eu confinados/ Que mesmo distantes estão ao meu lado”.

Vacina é tema da marchinha de Pico, do consagrado compositor paraibano Chico César, que cutuca o mandatário de plantão: “Eu tomo vacina/ Quem não quiser que tome cloroquina/Não vou passar vergonha/ Quem não quiser que escute esse pamonha...” Outro que fala do antídoto contra o virus é o MC paulistano Fioti. Em Vacina Butantan ele verseja: “É a vacina envolvente/Que mexe com a mente de quem tá presente/É a vacina saliente / Que vai curar ‘nois’ do vírus e salvar muita gente”.

Baile infectado dá nome ao primeiro single do novo álbum do Mundo Livre S/A, banda pernambucana do icônico movimento Mangue Beat. Num trecho, o vocalista Fred Zero Quatro, autor da música, critica a aglomeração e os poderosos: “Presidente é bom no jet sky/ Miliciano adora ostentação/ O Congresso passará álcool gel/ E a Suprema Corte lava as mãos/ A vidente tenta decifrar/ Pra onde o baile vai se encaminhar/ A imagem posso adivinhar/ A vela preta e um caixão”.

O fato de ser um dos primeiros artistas brasileiros a ser infectado pela covid levou o roqueiro Di Ferrero, a deixar claro sua expectativa em relação à pós-pandemia, ao compor Vai passar: “Rever antigos conceitos/ Botar fé que o mundo tem jeito/ Vai passar, tudo vai passar/ E a gente voltar a se abraçar”. Já Marisa Monte, dona de uma das mais belas vozes da MPB, com sutileza, mostra sua visão dos sombrios tempos de agora. No texto de Calma, uma das faixas do recém-lançado álbum Portas, confiante, afirma: “Eu não tenho medo do escuro/ Sei que logo vem a alvorada”.