“Clementina segurou a cruz até onde pôde. Doze filhos. O marido a abandonou depois que ela pariu o caçula. O sol inclemente do sertão passou a ser a metáfora de sua vida: esturricada no sofrimento, repleta de suor e com o coração de sulcos abertos pelas lágrimas. A fome foi quem verteu o peso da cruz. Clementina amava cada uma das crianças como se elas fizessem parte de si mesma. Veio a fome, essa bicha ingrata, sorrateira. Foi levando todos os filhos, um a um. Nordestina de força e fé, Clementina tentou de tudo. Quando sepultou o primeiro, percebeu que tinha sido enterrada junto.
Mariozinho, Tonico, Joaninha, Jacó, todos desistiram de viver. O vazio do estômago esvaziou-lhes os dias que viriam. Ao pé da cova de Quinzinho, o caçula, Clementina entregou os pontos. Clamou aos céus, pediu clemência. Virou árvore da caatinga, seca, feia, desiludida. Fincou suas raízes solo adentro. Embalaram os corpos dos 12 filhos. Foi, então, que Clementina brotou flor.”
Escrevi o texto para um grupo de literatura do Facebook. Pensei em 19 milhões de brasileiros que passam fome. São Clementinas, Marias, Josés, espalhados pelos rincões deste Brasil, agarrados à esperança que teima em minguar. Um flagelo que afeta seis vezes a população de Brasília. Um a cada quatro brasileiros ficou sem comida nos últimos meses. Situação agravada pela pandemia, apesar do auxílio emergencial, insuficiente. A política econômica do governo parece colocar o Estado de bem-estar social no fim da fila de prioridades. Desde o início da crise sanitária, 1,1 milhão de famílias brasileiras entraram em situação de pobreza extrema. São 14,5 milhões. Quase um terço da população enfrenta insegurança alimentar.
Quando se analisa o Brasil pelo prisma de potência do agronegócio, percebe-se que há algo errado. Somos um dos maiores produtores de alimentos do planeta. Mas o bem que produzimos chega às mesas de poucos abastados ou é escoado ao exterior. A Clementina do início do texto é o espelho de mulheres deixadas ao relento pelo destino, com a alma e o estômago machucados pelo vazio. Brasileiras abandonadas pelo governo, que só se recorda delas às vésperas das eleições. O Brasil é a antítese de si mesmo: pujança, miséria, bastança, fome, poder, corrupção, promessa de bem-estar social, abandono.
Ou o país olha para a população menos favorecida, ou a fome selará o destino de tantas Clementinas, Joaninhas, de Mariozinhos, Tonicos e Jacós. O Brasil precisa cuidar de seus filhos antes que a tragédia ganhe proporções ainda mais aterradoras. Seria bom se os engravatados saíssem de seus gabinetes refrigerados e visitassem famílias que não sabem o que comer. Comoção, empatia e respeito. Sempre.