Por André Gustavo Stumpf — Jornalista (andregustavo10@terra.com.br)
Em março de 2019, o vice-presidente Hamilton Mourão fez uma viagem oficial a Boston (EUA)para participar de evento organizado pelos estudantes brasileiros na universidade de Harvard. Trata-se de um encontro anual de três dias para o qual são convidadas autoridades de diversos níveis da administração brasileira. Os convidados fazem palestra e participam dos debates com os alunos, que, aliás, são em quantidade e qualidade surpreendentes. Naquele ano, os brasileiros configuravam a terceira maior nacionalidade no importante centro de estudos.
A administração do evento trata bem seus convidados. Ao vice-presidente foi entregue uma sala de aula para que ele a utilizasse como escritório para receber professores e estudantes. Uma gentileza. Na sala ao lado, foi colocado o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Os dois se confraternizaram. Conversaram por um bom tempo. A eles se juntaram os governadores Zema e Witzel, de Minas e do Rio de Janeiro, respectivamente, e o então presidente do STF, ministro Dias Toffoli. Os fotógrafos registraram o encontro. O diálogo foi normal, civilizado, aberto. Nenhuma restrição de parte a parte.
Mourão fez palestra para mais de 500 estudantes e professores. Na primeira fila, sentou-se FHC. Foi nesta ocasião, quando respondeu à pergunta de um professor, que Mourão estabeleceu a diferença entre ele e o general Ernesto Geisel: “Eu fui eleito”. Foi aplaudido de pé pelo auditório lotado, inclusive pelo ex-presidente na primeira fila. A participação de Mourão no Brazilian Day foi um sucesso. Ele deu entrevistas, conversou com estudiosos como Frank McCann, autor de uma história do Exército brasileiro. Antes de embarcar para Washington, onde se reuniu com o vice norte-americano, participou de encontro com brasileiros que vivem na região de Boston, ao lado do cônsul do Brasil na cidade.
A viagem do vice foi largamente divulgada no Brasil por jornais, revistas e emissoras de televisão, potencializada pelo fato de Mourão falar bem inglês e espanhol. Uma exposição sem precedentes do novo personagem do governo brasileiro que se colocava no mais alto nível na relação com estrangeiros. A repercussão no Palácio do Planalto foi péssima. Este é o primeiro capítulo do distanciamento entre o presidente e o vice. Enquanto Mourão falava para o mundo, Bolsonaro se contentava em conversas nas mídias sociais em aparições mal produzidas, com cenário e luz medíocres, áudio e vídeo de nível estudantil. O presidente também priorizou conceder entrevistas para comunicadores amigos e de menor audiência. A diferença entre um e outro tornou-se abissal.
As consequências são mais ou menos públicas. Decretou-se silêncio obsequioso para o vice-presidente, que se transformou no grande mudo. Assistiu quieto o drama da desconexão do governo e dos receios paranoicos do chefe, que teme adversários externos e internos. O vice não se movimenta contra o presidente. Mas admite, de público, que há uma dissonância entre ele e o chefe. E procura seu caminho futuro na política nacional. Por cautela, volta e meia sente-se na obrigação de dizer que não há oportunidade para um eventual impedimento. Mas um poderoso pedido de impeachment acaba de chegar ao Congresso. O documento uniu a esquerda a bolsonaristas arrependidos.
Recentes denúncias de cobrança e oferta de propina em negociações de vacinas no Ministério da Saúde atingem o partido de Ricardo Barros e do presidente da Câmara, Arthur Lira, que constitui a principal base do Centrão. Ricardo Barros, aliás, tempos atrás se manifestou contra o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Negou-lhe o voto. Agora é favorável à reeleição de Bolsonaro, do qual é líder na Câmara. Seu partido, o PP, comandava a diretoria de logística do Ministério da Saúde por intermédio de Roberto Dias, que teria pedido propina de US$1 por dose de vacina ao representante da empresa indiana Davati Medical Supply. Negócio de 400 milhões de doses. Perdeu.
Os correligionários de Lula enxergam conspiração da direita com o centro para tirar Bolsonaro e colocar Mourão no poder. Este seria o caminho para reduzir as chances do petista, uma vez que o vice-presidente poderia se candidatar à reeleição. Ambiente conspiratório é comum na política brasileira. O fato é que há um forte pedido de impeachment, poderosa pressão contra o presidente e o cheiro de corrupção envolvendo o governo. Cada um trata de sua paranoia. As forças políticas buscam objetivos diversos entre si. As eleições estão logo ali na esquina. Chegou a hora de encontrar candidatos, além dos conhecidos. Se é que eles existem.