Por ISABEL SOBRAL — Jornalista e consultora em comunicação, sócia da SHIS Comunicação
“Nesta empresa não há discriminação racial. O que determina a promoção profissional nesta corporação é a meritocracia.” Não são raras as oportunidades em que ouço tais afirmações, de forma mais ou menos enfática, no chamado mundo corporativo com o qual passei a conviver mais diretamente nos últimos anos. Como jornalista, após trabalhar por anos em veículos de comunicação de massa, em Brasília, passei a dar consultoria e assessoramento para empresas já há cinco anos. Sendo uma mulher negra e uma profissional treinada para observar, é fácil constatar a distância entre as palavras e a prática.
Especialmente entre as lideranças empresariais, é a “branquitude” que salta aos olhos, e não a negritude. Há uma percepção geral de que tal cenário é natural, já que os executivos melhor capacitados para os cargos estariam entre os brancos. São eles, afinal, que têm mais oportunidades de acesso às melhores condições de formação educacional. Mas o que se pode ver como natural não deve ser considerado normal.
Tradicionalmente, os processos de contratação nas empresas focam quem cursou universidades de elite e com inglês fluente, o que já afunila a seleção. Essa prática reforça o racismo estrutural na sociedade. O professor Silvio Almeida (autor do livro Racismo Estrutural, Ed. Pólen, 2019) bem define o termo como algo que vai além do conceito formal. Trata-se do racismo implícito existente de forma estruturada nas relações sociais, que exclui e zomba (mesmo inconscientemente) e está entranhado na evolução da nossa sociedade alicerçada no patriarcado, no sexismo e na escravidão.
Consigo identificar iniciativas de enfrentamento a essa tradição nas admissões, embora sejam isoladas e tímidas. São ações pontuais e sem a urgência que deveriam ter, considerando as imensas desigualdades de oportunidade no Brasil. Mas elas demonstram alguma vontade de se enfrentar o racismo estrutural no ambiente de trabalho, mesmo sendo estimuladas pela engrenagem que move os negócios: o lucro.
A possibilidade de aumentar o lucro motiva as transformações nas empresas. Nada contra. Afinal, é o lucro que permite investimentos, que abre novos postos de trabalho, que torna empreendimentos sustentáveis. Lucrar mais é o que “convence” as corporações a abrirem os olhos para a diversidade, o que inclui a raça, o gênero, a orientação sexual, uma eventual deficiência física etc.
Uma pesquisa da consultoria Mckinsey (intitulada Diversidade como alavanca de performance), com dados comparativos de 2014 e de 2017 referentes a mais de mil empresas em 12 países, atesta isso. O estudo afirma que há um vínculo entre a diversidade e a performance financeira das empresas. “Existem hipóteses claras e convincentes sobre os motivos de essa relação persistir — entre elas, melhor acesso a talentos, tomada de decisões aprimorada, profundidade dos insights do consumidor, fortalecimento do engajamento dos funcionários”, explica a Mckinsey.
Diante do que apontam as consultorias, exemplos das ações pontuais são facilmente encontrados nas redes sociais e na mídia. Um dos mais ruidosos ocorreu em setembro de 2020, quando a empresa Magalu abriu apenas para negros o seu programa de trainee 2021. Ao enfrentar acusações de “racismo reverso” e até “discriminação contra brancos”, a varejista argumentou que queria descobrir talentos e futuros líderes. A polêmica trouxe para a empresa uma enorme exposição pública, apoio pelo engajamento em uma causa social e, certamente, uma boa ajuda na elevação do seu valor de mercado.
Na esteira da Magalu, a Bayer, multinacional alemã de saúde e agricultura, anunciou oportunidades voltadas para jovens negros no programa “Liderança Negra” para 2021; a Gerdau abriu inscrições para seu programa de trainee com 11 das vagas exclusivas para mulheres; o banco BV abriu a primeira edição de um programa de estágio exclusivo para mulheres, com 45 vagas.
Não podemos ser ingênuos, apesar dos passos dados. Ainda há resistência às ações afirmativas em favor dos negros que reduzem as desigualdades e diferenças de oportunidades no mundo do trabalho. Enfrentá-la é uma luta diária, e pouco importa se motivada por questões morais, compensatórias ou lucro. O racismo, no Brasil, é hoje um crime inafiançável e imprescritível, segundo a Constituição, mas, por estar tão estruturalmente emaranhado na cultura nacional, é difícil o seu reconhecimento. Mas ser estrutural não significa ser inalterável.