Artigo

Empatia com os vivos e respeito pelos mortos

Na comunidade judaica do Rio de Janeiro, temos sofrido as perdas, como todos, e buscado a fé, a força e a resiliência para superar essa dor

ALBERTO DAVID KLEIN
postado em 26/07/2021 06:00 / atualizado em 26/07/2021 08:44
 (crédito: Noah Holm/Unsplash)
(crédito: Noah Holm/Unsplash)

A religião, a filosofia e a ética judaica nos ensinam que é preciso ser bom, generoso e ter responsabilidade com todos ao nosso redor. São os pilares da nossa vida e da nossa ação coletiva. Neste momento, o Brasil registra mais de 530 mil mortes causadas pela covid-19, mais de 19 milhões de pessoas foram contaminadas pela doença. No mundo todo, há mais de 4 milhões de mortos e o registro de mais de 187 milhões de casos. Como consideram epidemiologistas, é uma tragédia sem precedentes.

Na comunidade judaica do Rio de Janeiro, temos sofrido as perdas, como todos, e buscado a fé, a força e a resiliência para superar essa dor. Contudo, neste ano, em particular, uma experiência nos envolveu, reafirmando a certeza de que é absolutamente necessário ter empatia com os vivos e respeito pelos mortos: foi o processo de recuperação do Cemitério Israelita de Campos de Goytacazes.

A tristeza mais profunda que todos temos sofrido — judeus e não judeus — ao longo da pandemia, tem sido não poder realizar a despedida de quem se foi. Não há a possibilidade de resolver o luto como estávamos culturalmente acostumados. Fica um vazio. Em todas as culturas, a humanidade lida com a perda de modo ritualístico. Vivencia a separação irremediável. Sentimos a perda para curar-nos da ausência, para prosseguir.

Assim, ao longo da nossa história, criamos a elaboração desses sentimentos que estão presentes na morte de entes queridos. Na cultura judaica, após a morte, comunicamos a Chevra Kadisha, que prepara o corpo da pessoa falecida. Banham e fazem preces para pedir perdão em nome dele ou dela por seus possíveis erros em vida. Essa preparação é a Tahara, purificação. A pessoa falecida é, então, vestida em Tachrichim, roupas brancas, com camisa, calça e luvas. Busca-se a neutralidade para o encontro com o Criador.

Os materiais utilizados para o enterro são sempre os mais simples possíveis, simbolizando que, na partida, todos se igualam. Na cerimônia fúnebre, recitamos orações em hebraico. Os parentes próximos do falecido rasgam um pedaço da própria roupa, visto que seus corações estão enlutados. Levamos o menor tempo possível para todo o ritual, pois, para nós, a alma não consegue descansar até ser sepultada.

O Cemitério Israelita é o local onde tudo isso acontece. Portanto, é um espaço reservado, campo sagrado, que chamamos de “casa da eternidade”. Colocamos, após o período de luto mais intenso, uma lápide com escritos hebraicos trazendo nome, data de nascimento e falecimento. É para que não esqueçamos os mortos e para que seus túmulos sejam respeitados. Fica preservada a memória do falecido, da família, da coletividade. Dito isso, mesmo quem pouco conhece sobre a cultura ou a fé judaica, poderá compreender a importância, para nós, do processo de recuperação do Cemitério Israelita de Campos de Goytacazes.

Esse cemitério estava completamente abandonado, praticamente destruído. No ano passado, em outubro, ao assumirmos a direção da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (FIERJ), muitos dos nossos membros nos procuraram para pedir providências imediatas, ainda mais pela importância de um cemitério que remete à chegada dos primeiros fugitivos do Leste Europeu ao Brasil.

Em 2022, o Cemitério Israelita de Campos de Goytacazes completará 100 anos, e nele estão os mortos de famílias que procuraram, no Brasil, o abrigo aos ataques antissemitas do início do século 20, posteriormente viria o Holocausto. Eles vieram, em grande parte, da Rússia, da Polônia, da Romênia e alguns sefarditas da Turquia. A comunidade, que nunca foi muito grande, era bastante atuante no desenvolvimento da cidade, mas aos poucos foi diminuindo com filhos e netos migrando para a capital do Rio de Janeiro e para outras localidades. Ao restarem poucos, extinguiu-se a instituição responsável pela gestão do cemitério. Veio o abandono, o mato, a destruição de túmulos.

Apenas em janeiro passado conseguimos, já com a eleição da atual gestão municipal, recuperar, paulatinamente, o cemitério, contando com colaboração da Companhia de Desenvolvimento do Município de Campos (Codemca), órgão da Prefeitura de Campos de Goytacazes; da Sociedade Religiosa Israelita Chevra Kadisha do Rio de Janeiro; do Cemitério Comunal Israelita do Rio de Janeiro, conhecido como Cemitério Comunal do Caju, e de duas famílias da comunidade.

Na primeira semana de agosto, ou seja, em pouco tempo, reinauguraremos o cemitério. Toda a ação realizada guarda em si o respeito aos nossos antepassados e acontece, também, porque os cidadãos de Campos de Goytacazes, aberta e francamente, nos apoiaram. É importante explicar: poderíamos ter tomado outra decisão, como trazer os corpos de Campos de Goytacazes para outro cemitério judeu. Não aconteceu! Prevaleceu a solidariedade, o reconhecimento das nossas famílias em solo brasileiro. Exemplo de harmonia que nos inspira a contar a todos. Como dizemos em hebraico: Todá Rabá – Muito Obrigado!

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